A premonitória visão de Aldous Huxley quando em 1932 escreveu o seu famoso livro Brave New World, parece estar em vias de se concretizar. O brutal condicionamento a que estão sujeitos os trabalhadores, fazendo tábua rasa dos mínimos valores éticos ou morais, é o princípio que rege as sociedades hodiernas, sob o domínio do pensamento único neoliberal. O objectivo foi e continua a ser a domesticação das populações, através do que alguns designam por biopoder. O resultado deste processo traduz-se num nível esmagador de controlo e numa terrível dominação que atinge todas as esferas da vida colectiva e individual, visando o que o filósofo José Gil designa por fabricação de subjectividades obedientes.
O mecanismo é relativamente simples mas extremamente eficaz. Com o fim das veleidades democráticas nas últimas décadas do século XX, assoberbadas pela investida de um neoliberalismo triunfante (mais ou menos travestido de terceira via), as conquistas civilizacionais próprias das sociedades avançadas que ficaram plasmadas na tríade axiológica universal da liberdade, igualdade, fraternidade sofreram um rude revés. A partir de então, a lógica de organização social e de exercício do poder passaram a basear-se em princípios canónicos muito diversos: castração, discriminação, competição desenfreada. Dir-se-ia que, a coberto de uma capa de modernidade reiterada ad nauseum pelos porta-vozes servis desta nova ordem, regressámos, pelo contrário, às mais brutais injustiças das sociedades arcaicas ou à violência da exploração do que se convencionou designar por capitalismo selvagem da centúria de oitocentos. Os resultados estão bem à vista: precariedade laboral, desemprego generalizado, sujeição a condições de trabalho e de vida cada vez mais arbitrárias e miseráveis. Uma autêntica revisitação do passado.
Entramos agora numa fase mais sofisticada deste sistema. Já não basta excluir pelo despedimento, mas sim esmagar aqueles que (ainda) trabalham pelo medo e sujeição absoluta. A obediência cega às hierarquias impostas e a concorrência feroz entre os indivíduos, paralisa qualquer atitude de inconformismo e muito menos de protesto. Daí a sistemática campanha levada a cabo contra os sindicatos e as organizações de trabalhadores veja-se a ostracização implacável de que têm sido vítimas por parte dos governos PS-Sócrates bem como as constantes pressões e ameaças a todos aqueles que não aceitam de bom grado as imposições da tristemente famosa flexi-segurança ou a discricionariedade de caprichosas deslocalizações. Nem sequer falta o sucedâneo da droga soma que no futuro de Huxley permitia aos cidadãos do admirável mundo novo dissipar qualquer dúvida ou inquietação. A teologia do mercado e o sacrossanto consumo de que os centros comerciais constituem o expoente máximo bem servido pelo fast food televisivo e pela alienação mais completa dos mecanismos low cost de integração social, aí estão para servir de paliativos eficazes para a condição da subserviência. Não falta sequer um sistema tão totalitário quanto perverso de avaliação individual do desempenho.
Entendamo-nos. A avaliação é um processo fundamental para a melhoria da qualidade do trabalho e, dessa forma, um instrumento privilegiado de valorização individual. Mas não é com estes propósitos que o actual sistema funciona. Pelo contrário, pretende-se, por um lado, uma rigorosa codificação e rotinização de procedimentos que eliminem qualquer criatividade, envolvimento pessoal ou inclusive a possibilidade de melhoria das acções empreendidas, segundo uma lógica meramente instrumental, ditada superiormente e quantas vezes de duvidosa moralidade ou mesmo legalidade. Por outro lado, pretende-se o estabelecimento de uma rígida hierarquização de estatutos que, sobretudo, visa seleccionar e excluir e não corrigir ou formar melhor. O que alguns autores já apelidam de homem avaliado, como tipo social da contemporaneidade, mede-se pela posição ocupada nos vários rankings a que se está sujeito. A avaliação transforma-se, por esta via, num verdadeiro mecanismo de poder, dissolvendo qualquer preocupação deontológica ou ética profissional. A relação que cada um estabelece com os outros está dependente das performances que consegue alcançar. Sobrevém uma sensação de impotência perante as injustiças e de inferiorização das capacidades, tanto mais acentuada quanto os avaliados se encontram numa posição de subalternidade face aos avaliadores na maioria das vezes, agindo como juízes em causa própria e na medida em que estes últimos nunca estarão sujeitos à avaliação recíproca dos primeiros. O avaliador tem, assim, todo o poder mas não tem a autoridade, que apenas existe quando esse poder é livremente reconhecido, o que só é possível num ambiente de partilha, de confiança mútua e de lealdade voluntária. Por isso, os casos de arbitrariedade e de prepotência sucedem-se.
A avaliação tende a cobrir a totalidade da existência individual, ultrapassando largamente o campo profissional e imiscuindo-se mesmo nas esferas mais privadas dos sentimentos e dos afectos. Deixamos de viver com os outros, para passarmos a viver por comparação aos outros. Substitui-se a colaboração e a solidariedade por uma violenta concorrência e pela total falta de escrúpulos. Estamos em pleno reino do salve-se quem puder. A busca de compensações (prémios ou promoções) e a ameaça de desemprego, criam constantes estados de ansiedade e pânico. Como um jogo de soma zero, o êxito de cada um parece estar cada vez mais dependente do insucesso dos outros. Instala-se um verdadeiro processo de desumanização. A consideração e atenção para com os colegas desaparece, assim como a partilha de informações e a entreajuda. A vítima de discriminação ou iniquidade laboral sente-se isolada e sabe que não tem ninguém que venha em seu auxílio. A própria experiência do desemprego é vivida como um fracasso pessoal, com sentimentos de culpa e auto-exclusão assentes na crença induzida da falta de competência para o cumprimento das tarefas atribuídas, como um autêntico atestado de incapacidade inerente ao desempregado e não como o resultado da injustiça social e dos condicionalismos económicos e políticos de uma ordem neoliberal que incentiva estes atropelos à dignidade dos cidadãos. Este isolamento do indivíduo contemporâneo tem efeitos destrutivos na coesão social e na vida pessoal. Atingimos o grau mais elevado da alienação. O desespero e a depressão são os seus corolários lógicos, como o demonstra a recente vaga de suicídios na France Télécom.
Em entrevista ao jornal Público (30/1/10) o psiquiatra Christophe Dejours, especialista no estudo da relação entre o trabalho e a doença mental, revela-nos um episódio de um estágio de formação em França para responsáveis superiores de recursos humanos verdadeiramente arrepiante. Conta-nos este autor que, no início do curso, cada um dos 15 participantes recebeu um gatinho que deveria cuidar. Como é natural, as pessoas acabaram por se afeiçoar ao gato que lhes tinha sido atribuído. No final da semana de duração do curso, o formador deu a todos a ordem de
matar o seu gato. Um dos formandos não o fez e ficou gravemente doente, mas os restantes 14 mataram os respectivos gatos
e ninguém lhes estava a apontar uma arma à cabeça! O objectivo do estágio era, precisamente, aprender a ser impiedoso na relação com os outros. Atravessamos, sem dúvida, uma época singular, que o sociólogo Boaventura de Sousa Santos caracteriza acertadamente como fascismo social.
Hugo Fernandez