A GEOGRAFIA E A HISTÓRIA
Parte VI
Muito do Alentejo que aqui se descreveu, dir-se-á, é outro agora. O trigo vai-se indo e em seu lugar a caça, ou outra vez o porco, o de montado. A vinha, onde já estava, fica e cresce, mais sofisticada, saÃda do consumo local para os meandros comunitários do consumo externo. Assim em Portalegre, Borba, Reguengos, Vidigueira, e também nas regiões mais recentes que se esboçam. A paisagem transmuta-se, outra vez, com o lento avanço dos incultos. No seu centro, as aldeias urbanizam-se ou desertificam-se, cedendo à pressão das cidades e grandes vilas, agora à distância automóvel de alguns minutos: as velhas técnicas de construção de taipa e de adobe substituÃdas nos últimos vinte anos pelo tijolo e o betão, o gosto aderindo casa a casa, fachada a fachada a uma estética global televisivamente difundida.
Mas, apesar da mudança, a imagem persiste de um Alentejo que já não é, teimando em agarrar-se ao olhar simultaneamente escrutinador e selectivo dos fotógrafos, dos poetas, dos turistas, obstinados em ver aquilo que querem ver. Essa perspectiva do olhar não se encontra, é verdade, totalmente descasada da realidade; algumas vilas e cidades, sobretudo aquelas que obtiveram nas últimas décadas um grande reconhecimento externo da sua riqueza patrimonial - Monsaraz, Mértola, Marvão, Évora, por exemplo - mantêm intactas as geometrias de cal sobre o azul intenso do céu. Do mesmo modo, o colapso de um estilo tradicional de agricultura não significa o fim de toda a economia rural. Os primeiros indÃcios de uma reanimação talvez sejam já visÃveis quer na especialização e no apuramento - os vinhos, as carnes - quer no regresso a indústrias antigas - os queijos, os enchidos, as olarias. O corte não será porventura tão radical quanto as ameaças de descaracterização fÃsica e social permitirão pensar. No fundo, por detrás da modernização, a mesma muita terra a dividir por poucos, a mesma concentração dos homens, as mesmas casas como sólidos brancos na paisagem, as mesmas azinheiras, à s vezes esparsas, à s vezes raras, e finalmente o mesmo tipo humano, a fazer pensar que a imagem recente do poeta poderá ainda, e sempre, ser verdadeira:
«Incapaz de não ser senão diferente
há um modo de calar e um falar claro
um olhar cara a cara e frente a frente
um viver devagar que tudo é raro
e único e só assim urgente.»
(Manuel Alegre, Alentejo e Ninguém, «O Estilo», p. 18)