Dando continuidade às leituras da PONTE ATLÂNTICA, aliás, ultimamente um pouco (muito) relegadas para a penumbra (diria que mais paradas pelos afazeres!), retomamos um tema sempre presente e actualizado (neste caso tem por base um texto de Aurélio Nogueira sobre as dimensões da política) que é o de falar de política - nomeadamente a "acumulação" dos comentadores políticos que tudo misturam e a tudo se prestam!
Aos cientistas políticos, aos "verdadeiros" políticos, aos cidadãos que acreditam na política...
Quem se interessa pelas coisas associadas ao poder e à comunidade humana costuma distinguir duas formas dominantes de política.
A pequena política expressaria um lado mais demoníaco e mesquinho, concentrado no interesse imediato, na artimanha e no uso intensivo dos recursos de poder. Seria o reino dos políticos com p minúsculo, onde preponderariam a simulação e a dissimulação, a frieza, o cinismo e a manipulação.
A grande política, por sua vez, reflectiria o lado nobre, grandioso e colectivo da política, focado na convivência e na busca de soluções para os problemas comunitários. Seria o reino dos políticos com p maiúsculo, onde o privilégio repousaria na construção do Estado e da vida colectiva, na aproximação, inclusão e agregação de iguais e diferentes.
A grande política sempre carregou as melhores esperanças e expectativas sociais. Não seria exagero dizer que os avanços históricos estiveram na dependência da acção de grandes políticos, de estadistas, e da prevalência de perspectivas capazes de fazer com que frutificassem projetos abrangentes de organização social. Sem pontes para unir os territórios e fronteiras em que vivem homens e mulheres com os seus problemas, ideias, sentimentos e interesses , o futuro fica turvo demais, entregue ao imponderável.
Mas a grande política não é o oposto da pequena, nem tem potência para eliminá-la. De certo modo, é o seu complemento necessário, que a impede de produzir somente o mal ou o inútil, aquele que lhe empresta utilidade e serventia. Toda operação de grande política traz em si um pouco de pequena política, que ela tenta domar e direccionar. Não há muralhas separando um tipo do outro, que se retroalimentam. O estadista nem sempre veste luvas de pelica.
Há momentos em que a pequena política parece tomar conta de tudo. Em que faltam perspectivas e o chão duro dos interesses se distancia uma enormidade do céu dos princípios e valores que enriquecem e dão sentido à vida. Nesses momentos, a pequena política desloca a grande para a margem. Cai então sobre as sociedades uma névoa de pessimismo e desesperança, que se materializa ou numa adesão unilateral aos assuntos de cada um, ou no reaparecimento de uma fé fanática na acção providencial de algum herói. Os políticos grandes ou pequenos que sejam terminam assim por ser execrados e empurrados para a vala comum que deveria acomodar os dejetos sociais.
Existem também os que pensam e estudam a política. Hoje, costumamos chamá-los de cientistas políticos, abusando de um vocábulo, a ciência, que nos convida a eliminar o que existe de paixão e fantasia na explicação do mundo. Alguns desses cientistas, radicalizando o significado intrínseco da palavra, acreditam que só podem fazer ciência à custa do sacrifício da história, das circunstâncias, das ideologias, da própria política, e por extensão das pessoas apaixonadas, cheias de dúvidas e motivos não propriamente racionais. Fecham-se numa bolha e cortam a comunicação com o mundo, enredando-se numa fraseologia despojada de qualquer efeito magnético.
Muitas vezes, de tanto se concentrar noseu objecto, de tentar recortá-lo e isolá-lo da vida social, os cientistas políticos banalizam-se. Perdem o interesse em ligar a grande e a pequena política, por exemplo. Dividem-se em agrupamentos mais especializados na dimensão sistêmica do Estado competições eleitorais, governabilidade, reformas institucionais ou mais dedicados a articular Estado e sociedade, ou seja, a encontrar as raízes sociais dos fenômenos do poder. Não são tribos estanques, e invariavelmente combinam-se entre si. Mas distinguem-se pelas apostas que fazem. Ao passo que uns investem tudo na lógica institucional, outros inquietam-se na busca dos nexos mais explosivos e substantivos, que explicam porque é que as coisas são como são e como poderiam ser diferentes.
Nos momentos em que a pequena política prepondera, multiplicam-se os que se ocupam da dimensão sistêmica. Embalados pelos ventos a favor, tornam-se especialistas em soluções técnicas, quase indiferentes à opinião e à sorte das maiorias. As suas soluções, porém, não resolvem os problemas das pessoas. E como, além do mais, não se preocupam em construir pontes de aproximação ou romper fronteiras que separam e afastam, deixam de contribuir para que se afirmem diretrizes capazes de fornecer novo sentido ao convívio social.
Um belo dia, aqueles que vêem a política sistêmica como a quintessência da política esgotam os seus arsenais. Tropeçam diante da abissal complexidade da vida, que escapa das fórmulas mais engenhosas. Nesse momento, as atenções voltam-se para os que pensam a grande política. Que são capazes de injectar ideias e perspectivas à política, retirá-la da rotina e da mesmice, fazê-la falar a linguagem dos muitos, projectá-la para além de fronteiras e interesses parciais enrijecidos.
Um círculo então fecha-se e a política mostra-se por inteiro. Na face menor, revela a pequenez, a malícia e a vocação egoísta de tantos que se aproximam do poder para usá-lo sem causas maiores. Na face grande, resplandece o ideal de que o futuro, por estar sempre em aberto, pode ser construído com ideais, instituições democráticas, bons governos e cidadãos ativos, dando expressão igualitária a desejos, esperanças e convicções de pessoas dispostas a viver colectivamente.
O cientista político surge então de corpo e alma. Sem olhar com desprezo para o pequeno mundo da política miúda, que ele sabe ser parte da vida, mas sem perder de vista o valor da grande política, que exige ideias e doses expressivas de criatividade e desprendimento.
Quando ele falta, ou desaparece, um vazio se abre. E fica mais difícil de ser preenchido.