De uma vez por todas!
Marx! Oh Marx... onde estás? ... é só para dizer que está na altura de... vamos fazer de outra maneira... estás perdoado!
A história da modernidade é a história da formação, pela primeira vez, de um sistema-mundo. Nos últimos quinhentos anos, as antigas sociedades humanas, que permaneceram em relativo isolamento durante milénios, foram progressivamente unificadas num novo sistema muito mais amplo. Essa unificação foi feita através da incorporação de áreas e povos sob o controlo e influência do antigo subsistema europeu.
Os agentes e promotores dessa transformação construíram as suas próprias formas de compreender e conferir sentido ao que faziam. Primeiro foi a difusão do cristianismo; não obstante, esse discurso correspondia já a uma consciência de um tempo histórico que estava a ser posto em causa (Reforma). Rapidamente veio uma consciência nova. O iluminismo forneceu os dois conceitos fundamentais que justificaram o papel universal da burguesia europeia: razão e liberdade. Conceitos congénitos. Até então, a revelação e a tradição é que forneciam normas válidas para a organização da vida social. O pensamento só poderia ocupar um lugar central se também dele fosse possível deduzir princípios e normas universais que ultrapassassem os limites da mera opinião. Enorme desafio. Os iluministas afirmaram que era possível superá-lo: o pensamento podia produzir esses conceitos universais, e à sua totalidade eles denominaram - razão. A razão pressupunha a liberdade, pois o sujeito só pode atingir a verdade se o seu esforço de conhecimento não reconhecer nenhuma autoridade externa que lhe imponha limites. E a liberdade pressupunha a razão, pois ser livre é poder agir de acordo com o conhecimento da verdade.
Ao contrário dos defensores das tradições, necessariamente vinculadas a sociedades específicas, as vanguardas da modernidade europeia cedo proclamaram a validade universal das suas proposições. As mitologias, as religiões, a arte, a tradição, o direito, o Estado, a política e a economia, tudo foi julgado à luz do ideal homogeneizador do progresso. Pela primeira vez, a história passou a ser encarada como um processo. Inseridas nele, todas as demais formas de estar-no-mundo foram declaradas arcaicas.
A crítica à consciência histórica da burguesia europeia, feita por Marx, começou por colocar essa consciência na história. Marx mostrou que o motor da expansão europeia não estava na razão ou na liberdade, considerados como conceitos abstractos. Estava no desenvolvimento pleno, pela primeira vez, das potencialidades e das contradições da forma-mercadoria. Ela esteve presente, é verdade, na grande maioria das sociedades, mas sempre de maneira marginal e limitada. A moderna sociedade europeia libertou-a.
Histórica e sociologicamente, isso ocorreu a partir da inclusão, no circuito mercantil, de três elementos que sempre tinham ficado fora dele: a força de trabalho humana, a terra e os meios de produção. Transformar coisas em mercadorias era/é banal, mas não era/é banal transformar em mercadorias os atributos fundamentais das pessoas e da natureza. Só então o circuito mercantil reorganizou à sua imagem e semelhança, pela primeira vez na história humana, toda a vida social. Todos os agentes sociais relevantes, incluindo os detentores do poder político, se inseriram nele. Toda a produção passou a ser produção de mercadorias, e a produção de mercadorias passou também a ser feita por meio de mercadorias. Ao fechar-se, como a cobra que mordeu o próprio rabo, o circuito mercantil tornou-se imune a forças externas que lhe eram hostis.
Nos meados do século XIX, Marx escreveu que a sociedade assim organizada desenvolveria, pelo menos, três características novas:
a) seria compelida a aumentar incessantemente a massa de mercadorias, quer fosse pelo aumento da capacidade de as produzir, quer fosse pela transformação de mais bens, materiais ou simbólicos, em mercadoria; ou seja, no limite, tudo seria transformado em mercadoria;
b) seria compelida a ampliar o espaço geográfico inserido nesse circuito, de modo que mais riquezas e mais populações dele participassem; isto é, no limite, esse espaço seria todo o planeta;
c) seria compelida a criar permanentemente novos bens e novas necessidades; como as necessidades do estômago são limitadas (julgo eu!), esses novos bens e essas novas necessidades, criados para dar sustentação a uma acumulação ilimitada de riqueza abstracta, seriam, cada vez mais, bens e necessidades voltados para a fantasia, que também é ilimitada.
Essa nova sociedade desdobrar-se-ia em três direcções fundamentais: promoveria uma revolução técnica incessante (voltada essencialmente para expandir o espaço e contrair o tempo da acumulação), realizaria uma profunda revolução cultural (para fazer surgir um novo homem portador daquelas novas necessidades em expansão) e formaria o sistema-mundo (para incluir o máximo de populações no processo mercantil). Tudo isso se confirmou. De certa forma, esse processo já pertence ao passado, embora ainda seja recente. Mas o percurso teórico de Marx não foi interrompido aí. O seu verdadeiro lance de génio foi ter percebido que o capital procuraria ampliar as suas possibilidades de acumulação numa forma (que chamou D D) na qual ele (capital) nunca deixaria de existir como riqueza abstracta.
Pasme-se! É, exactamente, o que acontece hoje, com a pouca vergonha da acumulação financeira global. Mais... Marx anteviu: quando essa forma se tornasse predominante, a civilização do capital entraria em crise. Pois, ao repudiar as coisas, isto é, o trabalho e a actividade produtiva e ao afastar-se da realidade quotidiana, a acumulação de capital não poderia ser mais o eixo em torno do qual a vida social se organiza. A forma-mercadoria teria então de ser superada ou, pelo menos, remetida novamente para um lugar secundário, sendo substituída por algum outro princípio de organização da vida social.
Que não haja dúvidas: Marx nunca deixou de ser um filósofo, mesmo quando fez a crítica da economia política. Todavia, eis o que nos quis dizer: mantida sob o comando do capital e aprisionada nos sucessivos rearranjos da forma-mercadoria, a capacidade criadora da humanidade capacidade que decorre da sua liberdade essencial, ontológica poderia tornar-se muito mais destrutiva numa época em que o capitalismo atingisse um estádio senil, ou quando a capacidade técnica da própria humanidade fosse muito mais desenvolvida. Dependendo, no entanto, de quais fossem as forças sociais que predominassem então, - essa capacidade técnica expandida poderia ser colocada ao serviço da liberdade (aqui surgia a utopia: com a abolição do trabalho físico, cansativo, mecânico e alienado) ou da destruição (aqui a realidade: com a escalada do desemprego e da guerra).
Essa parece ser a disjunção mais relevante proposta por Marx e a sua profecia mais certeira. Não haja acanhamento: o capitalismo venceu. Estamos, finalmente, num sistema-mundo em que tudo é mercadoria, em que se produz loucamente para se consumir mais loucamente, e se consome loucamente para se produzir mais loucamente. Produz-se por dinheiro, especula-se por dinheiro, mata-se por dinheiro, corrompe-se por dinheiro, organiza-se toda a vida social por dinheiro, só se pensa em dinheiro. Cultua-se o dinheiro, o verdadeiro Tótem da nossa época um deus indiferente aos homens, inimigo da arte, da cultura, da solidariedade, da ética, da vida do espírito, do afecto. Um deus que se tornou imensamente mediocrizante e destrutivo. E que é insaciável: a acumulação de riqueza abstracta é, por definição, um processo sem limites.
O capitalismo venceu. Talvez, agora, possa perder esse tem que ser o nosso desafio. Pois, antes que o novo tenha condições de surgir, Hegel dizia, é preciso que o antigo atinja a sua forma mais absoluta, que é também a mais simples e a mais essencial, abandonando as mediações de que necessitou para se desenvolver. O momento do auge de um sistema, quando as suas potencialidades desabrocham plenamente, é o momento que antecede o seu esgotamento e a sua superação. As crises do mundo contemporâneo mostram que a acumulação de capital e a sua forma-mercadoria não podem continuar a ser o princípio organizador da vida social. É o desafio que está posto para nós neste século. O pensamento de Marx nunca esteve tão vivo.
Depois desta reflexão, quero agradecer ao César Benjamin que é autor de A Opção Brasileira (Contraponto, 1998, nona edição) e Bom Combate (Contraponto, 2004).