Qual a função e a responsabilidade do exercício de cidadania neste início de milénio, num mundo que se configura pelas incertezas, crises e mutações aceleradas? Quais as formas de expressão que lhe restam já que, agora, são outros os actores como os média que detêm uma maior capacidade de persuasão?
Será que não é possível construir um mundo e um país novos sem enfrentar o controlo da informação, que os grupos económicos e as centrais de informação impingem aos "Pasquins" e que a TV hoje reproduz como pratica assumida?
Será que espaços tradicionais da produção intelectual, como a escola/universidade, estão em crise a ponto de levar à necessidade deste debate noutros espaços? Ou, na realidade, é ela (a academia) que, diante da crise de outras instâncias, se coloca como um dos poucos espaços possíveis para o debate de ideias e para a mudança do quadro que vivemos actualmente?
Creio que é uma tarefa imensa, onde todos os esforços são bem-vindos e nunca seremos de mais. Segue-se um texto do Hugo Fernandez, sobre o compadrio, o desleixo, a negligência e a incompetência em colocar profissionais da educação nas escolas do nosso país!
MÁ EDUCAÇÃO
O Estado Novo nunca investiu na educação. As razões desta opção são claras. Por um lado a ignorância engendrava a submissão e a prevalência incontestada da ordem vigente. Por outro lado impedia qualquer veleidade de ascensão social e de eventual perturbação do status quo, perpetuando a exploração de uma mão-de-obra desqualificada e barata. No fundo, garantia aquilo que Salazar definia como o viver habitualmente. Não admira, por isso, que as taxas de analfabetismo fossem das mais elevadas da Europa, ultrapassando em muito os índices dos próprios países do Sul europeu, com os quais se costuma comparar o nosso país. Aliás, logo após a instauração da ditadura militar, o Decreto-lei nº 12425 de 2 de Outubro de 1926 reduzia mesmo a escolaridade obrigatória para 3 anos, alertando para os malefícios de um suposto excesso de instrução: Atalhe-se a indigestão intelectual dizia-se ensine-se menos para se saber mais. Em 1955, a World Survey of Education da UNESCO situava o nosso país no último lugar da Europa em termos de alfabetização. Recorde-se que a escolaridade obrigatória de 4 anos implementada pela I República, só meio século depois, em 1964, é ampliada para os 6 anos. Apesar disso, a percentagem de jovens que tinham condições para os cumprir continuava diminuta. A taxa de abandono escolar era muito elevada.
Parece que o actual Estado neo-liberal segue o mesmo caminho, numa continuidade arrepiante. Hoje como ontem, Portugal tem a mais alta taxa de analfabetismo e de abandono escolar dos países da União Europeia, incluindo já os do último alargamento. Todos os esforços feitos a seguir ao 25 de Abril para contrariar esse estado de coisas e para nos distanciar definitivamente dos atavismos do passado foram rapidamente abandonados ou ostensivamente contrariados. Que razões podem, desta feita, justificar tal situação? Paradoxalmente os mesmos que antes encontrávamos. À presunção, que ainda hoje subsiste, das vantagens competitivas da exploração da mão-de-obra barata e servil, soma-se a ganância acrescida de patrões sem escrúpulos, envolvidos na selva especulativa da desregulação económica globalizada. Para além disso, a acção dos responsáveis governativos tem seguido uma política de contínuo desinvestimento e asfixia do sector quer, desde logo, ao nível dos financiamentos, quer em termos recursos, quer em termos de pessoal e da sua formação. As diminutas percentagens do Orçamento do Estado para a Educação, a degradação acentuada do parque escolar, do mobiliário e dos equipamentos exceptuando, de quando em vez, escassos e muitas vezes desenquadrados apetrechamentos nas TIC o amontoar de alunos em turmas superlotadas, a crónica falta de funcionários administrativos e de auxiliares de acção educativa e a má distribuição quando não a falta de docentes, bem como o desleixo do Estado no cumprimento das suas obrigações na acção social escolar e no apoio aos discentes carenciados ou com necessidades educativas especiais, têm sido uma constante neste país.
Há, contudo, algo a que nunca se tinha assistido. Para além de todas as insuficiências já referidas, verifica-se hoje a mais despudorada incúria, irresponsabilidade e falta de respeito pelos cidadãos, por parte de quem detém o poder. O exemplo mais recente desta tendência tem a ver com as peripécias mirabolantes da colocação de professores para o ano lectivo de 2004/2005. Assinale-se, desde logo, a total incompetência da equipa ministerial promotora do actual modelo de concursos que, para além de provocar a anarquia do sistema recorde-se que os erros das listas oficiais de ordenação de professores foram da ordem das dezenas de milhares de casos esbanjou, numa informatização apressada e leviana do processo, outras tantas dezenas de milhares de euros do erário público. Tudo teve que ser feito de novo, sem que ninguém tivesse sido minimamente responsabilizado.
Acresce que, apesar dos enormes e irremediáveis atrasos verificados neste procedimento administrativo que devia ser rotineiro, o Ministério da Educação insistiu de uma forma obstinada e autista na manutenção de uma data de abertura do ano lectivo apenas justificável se tudo tivesse corrido normalmente. Assistiu-se então à situação surrealista do próprio Ministério anunciar a publicação das listas de colocação de professores para data posterior ao suposto início das actividades lectivas. Ou seja, grande parte do corpo docente das escolas portuguesas, só foi colocado depois das aulas terem oficialmente começado. O absurdo da situação é flagrante. Se não fosse dramático, era risível.
E é dramático, antes de mais, pelo que isso significou de angústia e incerteza para os profissionais afectados que, muitas vezes, só obtiveram colocação a muitas centenas de quilómetros de suas casas, com tudo o que isso implica em termos de deslocalização e desregulação das suas vidas e dos respectivos agregados familiares. E desenganem-se aqueles que pensam que os únicos como se isso fosse de somenos importância afectados foram os professores e respectivas famílias. É que a desmotivação e instabilidade emocional daqueles necessariamente se reflectirá no seu desempenho profissional e na qualidade de ensino ministrado aos alunos deste país, contribuindo para um acrescido desprestígio da figura do professor.
Mas é dramático também pelo que isso significa de negligência grosseira das obrigações do Estado para com este sector de actividade, que devia ser estratégico para um efectivo desenvolvimento do país. O que subjaz a esta abertura do ano lectivo a mais caótica de que há memória é o profundo desprezo pela Educação e por aquilo que ela significa e potencia. O atabalhoamento e improviso com que se iniciaram as actividades lectivas demonstram, para além de um desconhecimento ou mesmo de uma chocante negligência por quem tem as maiores responsabilidades pelo sector, um efectivo desinteresse pelo planeamento atempado e rigoroso do trabalho escolar por parte das escolas e dos respectivos professores. Como se os estabelecimentos de ensino, para cumprirem cabalmente a sua função, não necessitassem de planificar com tempo as actividades a desenvolver, promovendo-se, aos vários níveis e no âmbito dos diferentes órgãos existentes, as necessárias reuniões de docentes e possibilitando-se um conhecimento aprofundado, em especial para aqueles que aí são colocados de novo, dos alunos com quem se vai trabalhar, dos níveis a leccionar, dos materiais existentes para esse efeito, das características da Escola, do seu projecto educativo e do próprio meio envolvente em que esta está inserida. Como se a actividade docente não ultrapassasse os simples automatismos tayloristas de um caixa de supermercado e as escolas não passassem de meros centros aulários de carregamento automático. Estamos pois, nesta fase, confrontados com a filosofia do desenrasca e do improviso, em que tudo tem que ser preparado num ou dois dias.
Há outra continuidade surpreendente com os tempos de antanho. No Estado Novo não havia meios informáticos para colocar os professores. E mesmo que existissem, duvidamos que Salazar fizesse uso de tais modernices. Como hoje, aliás! É com esta falta de cultura de exigência e leviandade, com estes expedientes simultaneamente chico-espertistas e bacocos, que se pretende ganhar a batalha da produtividade tão apregoada pelo Governo? Não admira que, no Parlamento, o deputado Teixeira Lopes tenha afirmado que o Governo que se fez em nome da estabilidade é o Governo que dissemina a instabilidade.