A forma é a da admoestação, do ralhete, da indisfarçável irritação com que a notícia foi recebida, do azedume pela incomodidade da revelação. O conteúdo é o da recorrente fuga para a frente, do achincalhamento dos críticos, da arrogância de um poder que ainda se julga absoluto. Referimo-nos à carta que o primeiro-ministro, José Sócrates, enviou ao jornal Público (6/4/10), na sequência da denúncia de actividades privadas de carácter profissional desenvolvidas entre 1988 e 1990, na elaboração de projectos de engenharia civil no distrito da Guarda, quando já era deputado da Assembleia da República em regime de exclusividade.
Já nem falo da mais do que duvidosa alegação de que os projectos em causa foram elaborados a pedido de amigos e sem que eu tenha auferido qualquer tipo de remuneração., como diz o próprio, especialmente no caso de trabalhos técnicos, ao serviço da Câmara Municipal da Guarda, que dificilmente deixariam de ser pagos. Nem ao facto de se tratarem de 21 projectos de imóveis (moradias, prédios e até um pavilhão industrial) entre 1988 e 1990, lembre-se! quando declarou em 2007, ao Público, que era apenas uma actividade muito residual, resumindo-se à intervenção pontual em pequenos projectos. Nem tão pouco à circunstância de um mês e meio depois do parecer da Procuradoria-Geral da República de Janeiro de 1992, a propósito das dúvidas que se colocavam sobre o regime de exclusividade dos deputados e que postulava a impossibilidade legal de desempenho de qualquer actividade profissional, pública ou privada, ressalvando-se aquelas que diziam respeito a direitos de autor, realização de conferências e outras actividades análogas, em todo o caso de carácter excepcional o então deputado José Sócrates ter solicitado aos serviços da Assembleia da República que lhe fosse pago o respectivo subsídio de dedicação exclusiva, com retroactivos relativos precisamente ao período em causa, quando até reconheceu na altura que mantivera uma colaboração regular como responsável técnico de uma empresa de construção até 1989, reportando-se atente-se o auferimento do subsídio de exclusividade ao ano de 1988.
Refiro sobretudo a enorme desfaçatez e prepotência de um primeiro-ministro que se arroga o direito de admoestar um jornal que não fez mais do que a sua obrigação, isto é, investigar e reunir um conjunto de dados que permitem levantar legítimas suspeitas sobre a actuação pública de uma das mais importantes figuras do Estado português. E ao tom verdadeiramente acintoso, misto de sarcasmo e mal contido despeito, com que a carta é escrita, com referências à interessantíssima agenda jornalística e aos exigentíssimos critérios do jornal Público, não esquecendo de sublinhar naquilo que constitui uma intolerável pressão governamental sobre um órgão de comunicação social a opção do Público por uma linha editorial que desistiu da ambição de um jornalismo de referência., fazendo lembrar o quem não está connosco está contra nós de outros tempos. É que, como disse a eurodeputada socialista Ana Gomes no seu blogue Causa Nossa (7/4/10), a referida carta de José Sócrates Será de engenheiro técnico. Não é de primeiro-ministro.
Hugo Fernandez