Com este “post” não quer dizer que tenha esquecido os néscios e nababos da polÃtica doméstica, não, nada disso. Apenas, um ligeiro interregno para postar uma escrita que já me andava a atormentar por falta de oportunidade, uma vez que o essencial do seu conteúdo já para aqui estava alinhavado, só que nos últimos dias o assunto tem sido abordado, não só pela escrita blogueira a que vou deitando o olhar, como pela imprensa, em particular os escribas que tenho imenso gosto em ler(lá mais para baixo digo nomes). Face ao que recentemente se tem dito e escrito sobre as eleições americanas e os candidatos concorrentes, confundindo a realidade com o desejo, e perfilhando as temáticas em moda do contraditório, não podia deixar de postar outra formas de ver a “coisa”, vai daÃ... e aqui está outro cenário... digamos que é um palco secundário(!), repete os actores, embora a dramatologia tenha nuances.
... está a passar-se alguma coisa lá do outro lado do mar?
“Meus amigos no Partido Democrata, e estou feliz de poder chamar vários deles de meus amigos, garantem-nos que compartilham a nossa convicção de que a obrigação mais importante do nosso governo é ganhar a guerra contra o terrorismo, e não duvido da sua sinceridade (...). Lembremo-nos de que não somos inimigos, mas camaradas numa guerra contra um verdadeiro inimigo”, declarou o senador John McCain no seu discurso, no dia 31 de Agosto, durante a abertura da convenção nacional do Partido Republicano, realizada no famoso ginásio de desportos e centro de convenções Madison Square Garden, em Nova York. O discurso “conciliador” de McCain, pronunciado durante o encontro que oficializou a candidatura de George Bush, explicita a grande questão das eleições presidenciais estadunidenses: a manutenção da estratégia de “guerra ao terror”, quem quer que seja o vencedor. Do ponto de vista do establishment, esse, precisamente, é o ponto que deve permanecer intocado.
Como se sabe, do lado de fora do Madison Square Garden, a polÃcia armou um esquema de guerra para proteger a convenção não de um suposto ataque terrorista, mas de dezenas de milhares de manifestantes (só no domingo, dia 30, foram algo entre 150.000 e 250.000) que não aceitaram a ideia de ver Bush reeleito. Uma imensa área compreendida por doze ruas próximas ao local ficou fechada ao trânsito, e mesmo o acesso de peões foi extremamente controlado por cerca de 10.000 policias, agentes do FBI (polÃcia federal), unidades de elite e serviços secretos, segundo informaram, na altura, as agências de notÃcias. Isso é muito significativo, quando se recorda que Nova York foi o grande alvo do atentado de 11 de setembro de 2001. Se o objectivo do Partido Republicano, ao realizar a convenção em Manhattan, tradicional reduto democrata, era o de capitalizar os sentimentos da população de repúdio ao terror, o tiro saiu pela culatra.
John Kerry, o adversário democrata de Bush, reza pela mesma cartilha da “guerra ao terror”. Todavia, há uma diferença na forma e no tom do discurso: Kerry fala mais em diálogo com os aliados, em operações e estratégias acertadas no quadro das instâncias multilaterais, como a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO). Mas não coloca em dúvida o essencial, ou seja, o ponto ao qual McCain faz referência. Nem poderia. A “guerra ao terror” não foi criada por Bush, nem foi realmente motivada pelo atentado de 11 de setembro, que forneceu apenas o pretexto conjuntural para colocar em marcha o processo de ataque ao Afeganistão e a aprovação do Decreto Patriótico (um calhamaço de várias centenas de páginas que não poderia ter sido escrito no prazo de algumas semanas decorrido entre a data do atentado e a de sua aprovação pelo Congresso, em 26 de Outubro). Corresponde a uma estratégia de longo alcance, cujo objectivo é consolidar a hegemonia da superpotência no século XXI. Nesse sentido, é uma plataforma tão “kerryana” quanto “bushista”.
Não tenhamos ilusões, Bush e Kerry vêm do mesmo estrato social. Ambos pertencem a famÃlias multimilionárias e estudaram em Yale (situada em New Haven, Estado de Connecticut, uma universidade destinada à elite económica dos Estados Unidos), onde frequentaram a mesma associação de alunos, Skull and Bones (crânio e ossos). E Kerry, entre outras coisas já demonstrou o seu perfil alinhado à polÃtica externa da Casa Branca, já fez as tradicionais e ritualisticamente obrigatórias juras públicas de condenação a Cuba e de apoio incondicional a Israel, além, de na altura, ter pedido que o novo primeiro-ministro espanhol, José Luis Zapatero, voltasse atrás na intenção de retirar as tropas do seu paÃs do Iraque. Neste registo, assim, se Kerry não é igual a Bush, tampouco é fundamentalmente distinto.
A grande possibilidade de que algo mude de facto nos Estados Unidos, nesse quadro, não vem da “alta polÃtica” partidária, mas das movimentações que estão a acontecer na base da sociedade, nomeadamente, manifestações do tipo como as que ocorreram dia 30 de Agosto, diante do Madison Square Garden, também por vários actos realizados nos últimos meses, contra a presença de tropas americanas no Iraque, além de outros sinais mais difusos, mas também importantes, como o acolhimento dado ao documentário de Michael Moore (que, aliás, participou da convenção republicana, como jornalista, onde levou uma tremenda vaia por parte dos cerca de 50.000 presentes). São sinais de que o consenso nacional construÃdo pelo impacto de 11 de Setembro começa a perder os seus efeitos, por mais que a Casa Branca procure manter um clima artificial de pânico, multiplicando advertências de um “possÃvel novo atentado”.
Isso não significa que haverá uma “corrida à s urnas” contra Bush, nem significa que será necessariamente derrotado, até porque Kerry, além de não ter nada de fundamentalmente novo a dizer, não é do tipo que empolga multidões, como mostram as pesquisas e os comentários feitos pelos seus próprios partidários. Outra coisa é que a eventual derrota de Bush, independentemente das intenções de Kerry, comportará uma componente mais forte e explÃcita rejeição ao militarismo, e estimulará os sectores mais mobilizados da opinião pública americana. Pensamos que é uma razão forte e suficiente para fazer com que lideranças do movimento antiglobalização, incluindo Michael Moore, convoquem o voto em Kerry.Se por ora é impossÃvel prever quem será o vencedor, é certo que, em qualquer hipótese, o novo presidente encontrará uma opinião pública menos disposta a apoiar aventuras militares e menos vulnerável à retórica patriótica (o “papelão” no Iraque não dá grandes margens a ufanismos). Todavia, malgrado o seu contrário, nos dias que correm, é um bom augúrio.
Agradecimentos a algumas pessoas que me fazem ler a imprensa, nomeadamente, Miguel Sousa Tavares, César Benjamim, Rogério Rodrigues, E. Prado Coelho, Vital Moreira, LuÃs Osório e mais dois ou três, sobretudo, para este texto o José Arbex Jr.
Problemas de interpretaçã...