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albardeiro

Albardas e Alforges... nunca vi nada assim! Minto... já vi!

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Albardas e Alforges... nunca vi nada assim! Minto... já vi!

Continuação da conversa...

albardeiro, 29.10.04

Como é possível que as palavras ou que a linguagem tenham o poder para tornar o verdadeiro, falso, e fazer do falso, verdadeiro? Como seria uma sociedade na qual a mentira fosse a regra e, portanto, na qual não conseguíssemos nenhuma informação, por menor que fosse, que tivesse alguma veracidade? Como faríamos para sobreviver, se tudo o que nos fosse dito fosse mentira? As perguntas e as respostas seriam inúteis, a desconfiança e a decepção seriam as únicas formas de relação entre as pessoas e a tal sociedade seria a imagem do Inferno.


Todas as pessoas de bem sabem que para a atitude crítica ou filosófica, a verdade nasce da decisão e da deliberação de encontrá-la, da consciência da ignorância, do espanto, da admiração e do desejo de saber. Nessa busca, a vida é herdeira de três grandes concepções da verdade: a do ver-perceber, a do falar-dizer e a do crer-confiar.


Tudo isto para dizer que a conversa entre amigos passou essencialmente por esta busca de procurar entender, conversando sobre as coisas. Deste modo, o texto que segue é do Hugo Fernandez e o seu objectivo é completar mais um dos aspectos da tal conversa...!



REGRESSO AO PASSADO


Oliveira Salazar disse um dia que “Politicamente o que parece é”. E completou o raciocínio, juntando-lhe outra frase cheia de significado: “Politicamente só existe o que se sabe que existe”. Proferiu estas palavras no âmbito do trabalho das comissões da União Nacional de Lisboa, reunidas na sala do Conselho de Estado em 26 de Fevereiro de 1940, na intervenção que então fez subordinada ao tema “Fins e necessidades da propaganda política”. Estávamos em pleno Estado Novo. Numa sociedade democrática como a que temos hoje em Portugal, definir o que existe, o que se pode ou deve saber, dificilmente cabe ao Governo. Dificilmente, aliás, cabe a quem quer que seja. Pelo menos se esse alguém pretender impor os seus pontos de vista a todos os outros. No entanto, o actual Governo é useiro e vezeiro nesse tipo de expediente. De facto, a livre circulação de ideias e a expressão democrática da diferença assusta este executivo, obcecado em restringir a dissidência e em controlar o pensamento e a acção dos possíveis críticos. Por isso vive num mundo de medos, fantasmas e pretensas cabalas.


No reino da fantasia


E nem uma simples sesta, referenciada en passant numa notícia do jornal Expresso, passou despercebida ao crivo censório da paranóia governamental, tendo sido merecedora não só de um diligente desmentido da chefe de gabinete do primeiro-ministro, Ana Costa Almeida, como alvo de acusações de falta de rigor aos jornalistas em questão. Aquilo que é o exemplo acabado de uma não-notícia, ganhou foros de relevância nacional e de disputa política.


Como se pode ler na carta enviada ao director do Expresso, o gabinete do primeiro-ministro mostrou-se mesmo “indignado”. Estaremos certamente perante aquele aforismo que sentencia que “um chefe nunca dorme, apenas descansa”, sempre alerta e preocupado com a governação do país, mesmo se o seu destino imediato era assistir a um certame tão mundano como a ModaLisboa. A carta oficial termina com uma afirmação verdadeiramente espantosa de Ana Costa Almeida: “Por isso me interrogo se, como eu, muitos dos leitores de sempre do Expresso não se questionarão se algo de estranho não se estará a passar com o seu jornal”. Quem sabe, alvitramos, uma perigosa conspiração? Se não fosse dramático, era patético. É sobretudo sintomático do que se está a preparar. Como refere Miguel Sousa Tavares, “O episódio da sesta do primeiro-ministro não é um “fait-divers” ridículo, mas sim um revelador eloquente do estilo de fazer política de Santana Lopes, onde a aparência é tudo e a essência dispensável.” (Público, 22/10/04).


Assim, para Pedro Santana Lopes, a realidade deve-se subordinar sempre à imagem que dela se fizer, num jogo de aparências construído para mostrar um “mundo maravilhoso” que, de facto, não existe. Mediatização e fulanização políticas fabricam o carisma de um líder que tudo promete, sem ter a mínima intenção de cumprir. Recorde-se que o actual Primeiro-ministro nunca – sublinhe-se nunca – cumpriu o que prometeu, nem sequer relativamente aos prazos dos mandatos que desempenhou. A aparência passa a contar mais do que a realidade. As intenções sobrepõem-se às decisões. E numa sociedade desestruturada, onde as pessoas se sentem desenraízadas e descrentes no sistema democrático-representativo que pouco lhes diz – destruído que foi, precisamente, pelas práticas demagógicas e populistas continuadas – o terreno apresenta-se particularmente fértil. Reduzindo-se a política à comunicação e esta em especial à televisão, atingimos o grau zero da cidadania e a sabonetização dos seus intervenientes. Lembremo-nos de uma antiga afirmação de Emídio Rangel – e que, na altura, causou grande controvérsia – de que a televisão pode “vender um Presidente da República como se vende um sabonete”. É nesse tempo que agora vivemos e é um produto dessa lógica mediática que actualmente chefia o Governo português. Um poderosíssimo “shampoo”, portanto.


 No fundo, trata-se da repetição pela enésima vez da bitola de actuação de Santana Lopes: irresponsabilidade e demagogia, aparências em vez de realizações, parecer em vez de ser – ou melhor, de fazer. O que sobra em ambição, falta em competência. Vive da imagem e, por isso, vê a relação com a comunicação social de forma necessariamente instrumental. Não é, aliás, por acaso que o Conselho Nacional do PSD de 3 de Setembro, tenha desde logo aprovado a criação de uma “central de comunicação”, por iniciativa do próprio chefe do Governo. Como salienta Eduardo Cintra Torres, “Este Governo é perigoso. A sua actuação nos “media” é e será de enorme brutalidade.”, explicando que “Santana e o seu grupo não querem mais nada da política. Para eles, vencer é manter-se na crista da opinião pública o máximo tempo possível. A governação é irrelevante.” (Público, 11/10/04).


 O papel da propaganda


Para vender o seu “produto”, o Governo aposta tudo na propaganda. Segue, aliás, alguns princípios básicos do marketing político: qualquer mensagem é condensada ao máximo e reduzida, se possível, a um breve slogan, facilmente captado e rapidamente recordado; a mensagem é repetida até à exaustão; as posições assumidas, ainda quando parcelares e minoritárias, são transmitidas como as únicas existentes e, por isso, tornadas evidentes e incontroversas; simultaneamente, as posições contrárias, ainda que pertinentes e sábias, são simplificadas, distorcidas e caricaturizadas – para que percam qualquer validade argumentativa – ou, pura e simplesmente, ostracizadas e ignoradas; proibição absoluta de qualquer expressão de dúvida ou de perplexidade.


Por isso não interessam as trapalhadas, as situações de descoordenação, as contradições, os desmentidos, a ignorância e improviso governamentais. Desde que se consiga criar a ilusão de normalidade e eficácia, especialmente se tudo vier embrulhado num qualquer formato light de concurso televisivo ou de reality-show, tudo está bem. Isso é o que verdadeiramente interessa a Santana. Embaladas na doce propaganda do poder, as populações estão sujeitas ao mais descabelado fingimento e hipocrisia e à mais rematada alienação porque, nas palavras de Augusto Santos Silva, “a dispensa da razão crítica superficializa as coisas e desproblematiza as situações – tudo parece plano e linear, as equações simples, as soluções prontas, basta seguir e não pensar” (Público, 9/10/04). Só que, mais cedo ou mais tarde, a realidade acabará por impor-se. A “mistura explosiva de incompetência nata e impunidade total” de que fala Constança Cunha e Sá (Sábado, 15/10/04), ou a menos fleumática “absoluta inépcia e devastadora burrice” que refere Baptista-Bastos (Jornal de Negócios, 15/10/04), revelam, afinal, que as preocupações subjacentes à actuação do Governo de Santana Lopes – e que Jorge Sampaio nomeou em nome da estabilidade, recorde-se – residem na exclusiva defesa de interesses particulares de governantes e apaniguados tentando, através da propaganda, fazer crer que existem opções estratégicas e um plano coerente de governação para o país. Basta ver a quantidade de assessores, consultores e adjuntos designados – que na curta vigência do actual Governo, já superou aquilo que qualquer executivo anterior fez no decorrer de legislaturas completas – para nos apercebermos da dimensão do polvo instalado. Basta referir os milhares de elementos de confiança colocados nas chefias do aparelho de Estado e mesmo do funcionalismo público, bem como as pressões que são exercidas ao nível do sector privado e em especial na área dos “media”. Veja-se o caso paradigmático da nomeação do comissário político Luís Delgado para presidente da Lusomundo Média e da Global Notícias, empresas mediáticos que são propriedade da PT – consórcio do Estado que, como se sabe, se encontra fortemente condicionado pelo poder político. As preocupações e o bem-estar das populações pouco lhes interessam. A leviandade das soluções propostas e a arrogância das decisões adoptadas, revelam o mais profundo desprezo por todos aqueles que não alinham no jogo. E, como se sabe, são muitos, mesmo muitos.


É seguindo a mesma lógica de actuação que, num colóquio em Lisboa sobre serviço público de rádio e de televisão, o ministro da Presidência Nuno Morais Sarmento, afirmou que deve ser o Governo a definir o modelo de programação da RTP defendendo, nesse sentido, a existência de “limites à independência” dos operadores públicos de comunicação. E, para que não restassem dúvidas sobre o que pretendia dizer, acrescentou “Não são os jornalistas nem as administrações que vão responder perante o povo” (Público, 20/10/04). A intencional confusão entre Governo e Estado – isto é, a governamentalização do serviço público – nada tem a ver com o Portugal democrático, mas sim com propósitos controladores e limitadores da liberdade de expressão mais próprios dos tempos de Salazar. Não é por acaso que o trabalho da direcção de informação da RTP e de alguns dos seus principais responsáveis, têm estado sob “avaliação” governamental. Não é também por acaso que o próprio Morais Sarmento, que dirige o novo Gabinete de Informação e Comunicação (GIC) do executivo– isto é, a “central de propaganda” do Governo – tutele a televisão e rádio públicas (naquilo que me parece uma clara situação de incompatibilidade das respectivas competências), para além de controlar instituições tão estratégicas para a formação da opinião pública como o Instituto Nacional de Estatística. Recordemos, aliás, que no início da sua actuação ministerial, ainda na vigência do anterior Governo, o mesmo Morais Sarmento silenciou ad hominem o jornalista Carlos Pinto Coelho e o programa “Acontece”, numa clara atitude discricionária e censória. Foi um aviso. Nuno Morais Sarmento e a sua “central” de consultores de marketing político protagonizam a actuação típica daqueles que os americanos designam por “spin-doctors”: fabricar factos favoráveis ao Governo, domesticar a comunicação social ou, no caso de tal não ser possível, recorrer a processos mais obscuros de pressão e silenciamento.


Veja-se, também, a espantosa comunicação do primeiro-ministro ao país em Outubro passado, que obrigou as televisões portuguesas à sua transmissão simultânea e incluída no tempo de antena dos respectivos noticiários – procedimento de duvidosa legalidade e que é, sublinhe-se, uma cópia do que se passava no tempo do Estado Novo – naquilo que justamente o Partido Comunista Português definiu como “requisição civil televisiva”. Sem que nada o justificasse, sem que nenhuma urgência nacional – a não ser a necessidade imperiosa da propaganda – pudesse explicar. No domínio da liberdade de expressão são, aliás, constantes os excessos e atropelos protagonizados pelo actual Governo. Basta lembrarmo-nos de casos como o da utilização de vasos de guerra para silenciar os defensores da interrupção voluntária da gravidez ou do afastamento da opinião pública de vozes incómodas para o poder – o exemplo do professor Marcelo Rebelo de Sousa – na sequência de pressões ministeriais inaceitáveis e com a cumplicidade servil dos homens de mão responsáveis por alguns orgãos de comunicação social. Fechou-se, assim, um círculo. Convenhamos que entre Salazar e Santana há diferenças substanciais, antes de mais de responsabilidade, de dedicação à causa pública e de conhecimento dos assuntos de Estado. Como é evidente, nenhum dos dois é, no entanto, um modelo que interesse ao país.

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