Albardas e Alforges... nunca vi nada assim! Minto... já vi!
Quarta-feira, 8 de Dezembro de 2004
DESASSOMBRAMENTO... PARTE II!

Dadas as características da conjuntura actual., em que o espectro da «crise» se agita sem cessar, admitir-se-à ser útil recordar algumas observações que o filósofo e político italiano António Gramsci fez há 70 anos nas suas reflexões sobre Maquiavel. Analisando as situações nas quais a classe dirigente fracassa num determinado empreendimento político, «em nome do qual pediu ou impôs pela propaganda o consenso das grandes massas», Gramsci comentou: nesses casos, fala-se em «crise de autoridade», mas o que se verifica é uma «crise de hegemonia, ou crise do Estado no seu conjunto».


Será, então, possível dizer que a nossa crise deriva do facto de que a classe dirigente fracassou no seu principal empreendimento político e por isso perdeu o consenso e o consentimento dos “cidadãos”? Com o devido cuidado e sem querermos forçar o raciocínio, achamos que sim. Talvez se possa mesmo afirmar que, em rigor, no plano histórico mais geral, nenhum grupo dirigente (geracional/partidário/) conseguiu exercer uma efectiva “hegemonia” (no plano dos valores da democracia/ética/política) entre nós, desde que entendamos por hegemonia a capacidade de obter apoio activo e imprimir uma direcção moral e intelectual à sociedade. Isso, porém, levar-nos-ia longe demais. Mas há algo que não precisa de  muita investigação, salta à vista: é que a nossa actual classe dirigente -- que congrega na sua base uma diversidade de grupos e interesses -- nunca chegou a apresentar um desenho/estratégia/projecto ao (de) país e uma moral que a credenciassem à hegemonia, no sentido atrás definido. O seu simulacro de projecto sempre foi o do economicismo, secundado por uma vaga ideia de modernização entendida como «abertura para o mundo» (que mundo? Terceiro! Primeiro! Dos antípodas!) e por uma categórica opção pelo «mercado» sem ter nada para oferecer a esse mercado. Nunca apresentou à Nação (ao povo) que País estava disposta a construir, nunca a conclamou a aderir a algo mais substantivo (só se for o pontapé na bola!). Nomeadamente, agora, quando o falhanço foi/é total e hegemónico, quando os próprios sectores económicos (todos!) bradam contra o governo e este se entregou a uma mera radicalização da sua ideia matriz (lembram-se – estabilidade e controlo do défice), como se pode dizer que temos apenas uma «crise de autoridade» ou de governabilidade? Estamos é diante de uma profunda ausência de hegemonia.


Todavia, porém, não quer dizer que o fracasso deste governo seja absoluto ou que, pasme-se, já amadureceu uma nova capacidade hegemónica, quer dizer, uma nova disposição de forças que traga consigo um outro empreendimento político - um outro projecto - e possa em nome dele postular a condução do nosso país. Se a crise é de hegemonia, diria Gramsci, preparem-se - podemos esperar que dela resultem muitas «situações delicadas e perigosas», pois os diversos grupos partidários/políticos (sobretudo os que neste momento são poder) não têm «a mesma capacidade de se orientar e de se reorganizar rapidamente». Existe um risco claro de fugas para a frente! Paira no ar, muita ansiedade e afã de poder e de notoriedade. Nem sempre se produzem autênticas soluções orgânicas, impostas pela fusão dos oposicionistas e dos que estão fora do poder. Pode parecer descabido e absurdo, todavia, podem surgir, por exemplo, soluções de outro tipo, fundadas na força ou na actividade de homens providenciais ou de cariz messiânico (não é inédito, a nossa história tem vários registos!).


Donde ser possível antedizer que a crise dos nossos dias não está necessariamente fadada a convergir para desfechos que beneficiem os grupos sociais desfavorecidos e os sectores que neste momento são oposição. Não que estejamos sendo impelidos para retrocessos autoritários ou para a revivescência de taras personalistas. Mas, como em toda a crise orgânica em países desmemoriados, de população com elevada iliteracia, diferenciada e sempre à procura do vendedor de sonhos, com um sistema político fragilizado e atolado em vastos e difíceis problemas, o facto é que a oposição nem sempre se mexe com rapidez e o governo ainda tem “boas” chances de se recompor, fazer alguns «sacrifícios» e retomar o controlo da situação. Tanto mais se conseguir contar com conjunturas internacionais favoráveis – não sei bem como, mas... desconfiem! Com franqueza, se agora ressurgir em cena (como alguém já disse) a “tralha” que já nos atolou, sejamos claros: o que não parece destinado a desaparecer é o nervo do problema - justamente a crise de hegemonia, a crise do Estado no seu conjunto. E contra essa crise de pouco adiantam as soluções cosméticas que têm sido aventadas nos últimos tempos. Para dar um rumo sério e credível ao País (e não a este ou àquele governo em particular), carecemos mesmo é de uma efectiva reinvenção da política, com a qual seja possível reformar democraticamente o Estado.


O DESASSOMBRAMENTO VAI CONTINUAR com a ajuda das leituras da ponte Atlântica de Milton Lahuerta, Marco Aurélio Nogueira, Fernando de La Cuadra, Alessia Ansaloni, Leandro Konder, Guido Liguori, etc.



publicado por albardeiro às 01:22
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2 comentários:
De Anedotário a 9 de Dezembro de 2004 às 00:43
Como dizia o Eça a propósito do regime político português da altura, referia que as geografias diziam que era uma monarquia, mas, bem vistas as coisas, nem parecia uma monarquia, nem parecia uma república: era "apenas um chinfrim":- «O poder é distribuído de forma singular: doze ou quinze homens, sempre os mesmos, alternadamente possuem o poder, perdem o poder, reconquistam o poder, trocam o poder. "O poder não sai de uns certos grupos, como uma péla que quatro crianças, aos cantos de uma sala, atiram umas às outras, pelo ar, num rumor de risos"».
Tendo em conta esta "bitola", aguardamos mais desassombramentos.


De Pitoresco a 8 de Dezembro de 2004 às 02:51
Excelente. O desassombramento promete. Porque é que há pessoas com ideias e não se tornam visíveis?! Penso que entendeu a mensagem.


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