Já que o espectro da crise não parece destinado a abandonar-nos e a todo momento está de volta ao palco com um furor redobrado (é só ter alguma atenção aos sinais... escritos, sonoros, visuais, etc), contaminando o léxico corrente, vale a pena especular livremente sobre a questão. Na ideia de crise (do grego krinein: separar, romper), estão arreigadas as ideias de transformação súbita, perturbação, dificuldade, podendo-se insinuar também, com certa facilidade, a de morte, de fim, de caos... Na maior parte dos seus inúmeros significados, "crise" associa-se a um turning point, no qual explicitar-se-ia uma situação de particular gravidade e, simultaneamente se revelariam, como diriam os médicos, as chances de recuperação do paciente.
Fala-se (presentemente) em crise política pela incompetência dos nossos governantes. Em crise económica para assinalar uma fase de desemprego ou recessão. Em crise de consciência para demarcar uma inquietação causada por graves problemas éticos. O senso comum das pessoas regista a existência de crises sempre que se manifesta a ruptura de um padrão (pessoal, grupal ou colectivo) tido como "normal". A psicanálise muitas vezes associa crise a surto, a perturbação de um estado de relativo equilíbrio psíquico por força do descontrolo de certas fantasias afectivas. Muitos sociólogos usam a palavra para qualificar situações afectadas pela quebra dos padrões tradicionais de organização social, pelo "dilação do tecido social" que comprometeria a reprodução de uma dada "ordem".
Tão forte é a carga dramática do substantivo que quase nunca se chega a perceber que as crises também têm um quê de positividade e de possibilidade e podem ser um momento de renascimento, no qual se entrelaçam passado, presente e futuro: um ponto inequivocamente "crítico", no qual se faz sentir uma insatisfação em relação ao que está aí, a um presente que nos descontenta e atormenta, então, estabelece-se uma distância em relação ao que já foi e prepara-se uma aposta para o que virá a seguir. Embora não seja sinónimo de «morte», a ideia de crise insinua, quase sempre, que há algo morto na realidade.
Quando se diz, por exemplo, que uma doutrina está em crise, não se quer necessariamente dizer que ela perdeu o sentido, mas sim que algumas das suas teses e elaborações chegaram aos dias de hoje privadas de maior poder de convencimento. Uma crise de governo não anuncia necessariamente o fim do governo, mas sim que algumas das suas condutas e opções já não preenchem os requisitos mínimos para o sustentar. O problema é que nem tudo o que morre é enterrado. Como diria Gramsci, temos uma crise quando o "velho" insepulto já não dirige os vivos e o "novo" ainda não se explicitou, não se qualificando portanto para orientar o presente.
As teorias que explicam o mundo, quando despidas das carapaças dogmáticas que tendem a acompanhá-las, estão sempre em transformação. Deveria ser assim também com os projectos e as convicções das pessoas, dos governantes e das organizações. Tendo em conta, alguns organizações e pseudo-projectos políticos que se posicionam na sociedade portuguesa, diríamos que não se transformar representa, no caso, perecer: perder a capacidade de continuar explicando uma realidade que não cessa de mudar. A chamada «consciência crítica» tem o seu principal atributo justamente nesse ponto. É uma consciência sempre "em crise": desafiada a negar- se a si própria para permanecer em condições de captar a realidade que muda ininterruptamente.
Todavia, disso também se podia concluir que não há por que temer a crise. Ela destrói, mas também cria a possibilidade de construção. Dissolve resistências dogmáticas e receosas ao novo. Abre espaços para experiências inéditas, altera a posição relativa dos interesses e das forças em luta. Em rigor, numa crise, vêm à tona as misérias e as grandezas humanas: agudizam-se desníveis e desigualdades sociais ao mesmo tempo que pode (atenção, pode!) ganhar destaque o talento dos autênticos líderes, daqueles que agem quando todos parecem desanimar e que conseguem extrair do confuso presente o eixo de um futuro melhor devia ser assim! Se os homens chamados a liderar não o fazem, não são líderes (ou só o são nominalmente), mas protagonistas subalternos, fadados a ser impiedosamente devorados pela crise.
A dimensão «purificadora» de uma crise só pode ser bem aproveitada se, no organismo em questão, existirem iniciativas com capacidade para dirigir processos e ampliar as margens de controlo e regulação do que é «desartificioso» e «natural». Em termos de sociedade, tudo isto só faz sentido, se houver perspectiva política, disposição para intervir e coordenar e instituições preparadas para organizar o futuro.
"A minha terra não é inefável. A vida da minha terra é que é inefável. Inefável é o que não pode ser dito". (Jorge de Sena, trecho de Paraísos Artificiais)
Reiteramos a proposta: O DESASSOMBRAMENTO VAI CONTINUAR com a ajuda das leituras da ponte Atlântica, entre outros, de Milton Lahuerta, Marco Aurélio Nogueira, Fernando de La Cuadra, Alessia Ansaloni, Leandro Konder, Guido Liguori, etc.