É imperativo fazer política, é essencial mais política...
Suprema ironia! Vivemos simultaneamente há anos enovelados e pautados pelas reformas. As ditas, por assim dizer, primam pela ausência e não saem de cena. Mas, a respeito do alento, da movimentação intensa em nome delas, das declarações e dos compromissos oficiais, a agenda reformadora continua congestionada. Não se registam avanços substantivos. O Estado é hoje bem diverso do que foi até aos anos 80, sobretudo graças aos ininterruptos programas de tudo privatizar (não importa a que preço e com que custos) postos em prática pelos últimos governos. Apesar disso, não temos hoje no país um Estado melhor, mais estruturado ou mais competente. Somos convidados o tempo todo, pelo discurso dominante, a ver o Estado como algo «externo» à sociedade, um simples agente de controlo, protecção e regulação do mercado. A sério, falta política no nosso debate sobre o Estado, que não é tratado nem como instrumento de dominação, a expressar uma dada correlação de forças, nem como um desdobramento vivo da sociedade, espaço no qual se condensam interesses e relações sociais, nem, muito menos, como elemento de realização de determinadas aspirações e apostas comunitárias. Chega de panaceia demagógica. Entre nós, o Estado tem sido tratado como um agente entre outros, quase sempre como um instrumento «negativo», cujas proporções «exageradas» e cuja ineficácia crónica pesariam como um castigo sobre a sociedade, os indivíduos, o livre mercado. Banalizado, abjecto e invariavelmente maltratado, o Estado não consegue ver as suas necessárias reformas avançarem.
Este empobrecimento do debate do Estado -- esta redução economicista do Estado -- não surgiu do acaso nem é simples artifício posto em prática pelos que se assenhorearam da cena política actual. É também isso, mas é sobretudo um produto histórico, de incompetência, se quisermos ir longe, pela forma mesma como somos capazes de desbaratar rios de dinheiro que aqui chegaram sob a forma de ajudas comunitárias e que hoje pouco resta (minto, existem estádios e rotundas) - e a culpa é do Estado. Para os artificiosos, não interessa ver o Estado pelo seu lado «nobre»; é preciso pintá-lo como um entrave ou tentar moldá-lo como instrumento passivo e apequenado de determinados interesses. No meio de hiatos esta amálgama doutrinária de menos Estado, sem as necessárias reformas administrativas, foi-se recriando entre nós, emaranhando ainda mais as já confusas relações entre o público e o privado, com a visível mercantilização geral da vida, da cultura e da política.
A visão reducionista que cerca o debate sobre o Estado trava e inviabiliza a sua reforma, na mesma medida em que tende a apresentá-la como uma questão de custos e dimensões. Nessa operação, o serviço público é entendido como um acessório da política económica e o Estado como um obstáculo para o progresso, quer dizer, para a modernização típica deste início-de-século, que, como sabemos, não compartilha qualquer ideia generosa (mais «clássica», digamos assim) a respeito do que seja progresso, quase sempre reduzindo-o também a avanço tecnológico, a oferta abundante de bens descartáveis ou a meras sofisticações organizacionais atenção, e isto é válido para as alternativas político/partidárias que neste momento estão no terreno (vd. o chavão do choque tecnológico). Como consequência, generaliza-se a opinião de que, quanto menor for o Estado e quanto menos investido de poderes e atribuições ele estiver, melhor para a sociedade. O Estado converte-se, assim, numa espécie de refém do mercado e do cálculo financeiro; algo, em suma, vazio de densidade e nobreza, desligado da sociedade que o gera e o determina.
Com isso, não se debatem os aspectos mais substantivos, concernentes ao sentido e à natureza da comunidade política estruturada que é o país. Não nos podemos surpreender, portanto, que os temas propriamente políticos do que deve ser uma reforma não consigam impor-se à discussão. Por um lado, ficam à margem, represados, reaparecendo, de tempos em tempos, de modo simplificado e casuístico, se para o caso der jeito. Por outro lado, quer dizer, de um modo não casuístico, mantém-se activo um discurso reformador eminentemente «passadista e estatizante», dedicado a desenhar soluções institucionais engenhosas, quase todas aprisionadas àquela frieza formal típica do raciocínio por «modelos e etapas» -- um discurso que, hoje querendo politizar, em nada ajuda a politizar a discussão e que mais confunde que esclarece. De uma forma ou de outra, permanecemos longe da política: presenciamos um debate despolitizado.
Já para não falar das proposições referentes à chamada «reforma administrativa» (sempre presente e sempre adiada) que invariavelmente cedem ao discurso «contábil», penalizando recursos humanos e institucionais, entregando-se à lógica «pseudo-empresarial do vale-tudo» do sector privado, numa clara demonstração de que, também aqui, estamos fortemente amarrados à prevalência do interesses (e não do mercado, que é outra coisa) sobre o Estado: o economicismo que contamina a cultura da época traduz-se, na área da administração pública, numa valorização desfasada e muitas vezes apressada das técnicas e das «tecnologias» e dos procedimentos pensados pelo mundo empresarial, vistos como expressão pura do que há de mais moderno e bem acabado e, por isso, passíveis de serem transferidos para as organizações do sector público, ignorando as necessárias reformas que devem ser realizadas, nesse mesmo sector, para não criar mais gastos desnecessários e desbaratar recursos.
Meus caros, não se iludam... batemos no fundo! É urgente que desencadeamos uma batalha pelo Estado. Uma peleja que tenha a ver não tanto com o «custo» do Estado, mas com as ideias e os projectos a respeito do modo como desejamos viver. Não se trata portanto do Estado, mas essencialmente da sociedade: dos interesses que nela prevalecerão, da organização institucional e da cidadania que deverão nela vigorar, do padrão de desenvolvimento, justiça social, distribuição de riqueza e inclusão no qual viveremos. Por isso, qualquer reforma digna desse nome não pode ser pensada em função dos recursos que os governos deixarão de gastar, mas da capacidade que tiverem de conceber uma nova sociedade e de se vincularem aos destinos da população, à defesa dos seus direitos, à promoção do seu bem-estar. Quer dizer que a reforma do Estado deve ser o prolongamento de uma reforma democrática e social, pois o seu objectivo é reformular as relações entre o Estado e a sociedade civil. Só pode frutificar se for possível a combinação com uma iniciativa voltada para repor o sentido da política e recuperar os vínculos entre as instituições, os indivíduos e os grupos. A sua meta, afinal, é o revigoramento das possibilidades de que, entre os cidadãos, se estabeleçam relações superiores de reciprocidade que não só garantam direitos adquiridos e reconhecidos como também propiciem novas oportunidades de justiça social, de representação política e de democracia (vejam-se as novas formas de participação cívica e de debate claro que estou a referir a blogoesfera) . Isto tudo, no fundo, nada mais é que o reconhecimento de que o Estado continua a ser, agora em novas circunstâncias e com outra envergadura, o ambiente no qual se celebra o "contrato social".
O tema do Estado e da sua reforma deveria estar no centro das preocupações nacionais. Não pode ser visto como mero item de um programa de governo, mas como algo revestido do mais elevado e autêntico interesse público. No momento presente, face ao clamoroso falhanço dos populismos, as formações políticas democráticas e de esquerda, nesse particular, têm uma importante função a cumprir, pois a elas cabe não só examinar e questionar o actual modelo mas propor uma alternativa, mais generosa e mais contundente. A elas cabe, também, fazer com que o debate chegue às bases da sociedade e atraia/convide os cidadãos .
Face ao ponto a que chegámos, é insensato achar que o tema do Estado e da sua reforma possa ser monopolizado por um qualquer grupelho de indivíduos que se assumam como governo, pelo discurso oficial, por técnicos e cientistas ou por uma forma qualquer de «pensamento único». É igualmente insensato pensar que o debate, sobre a necessária reforma do Estado, possa ser mantido à margem, represado, entregue ao manuseio e ao monitoriamento de quem quer que seja. Mais do que qualquer outro, ele tem que estar (está) no coração da democracia e da sociedade civil, e manter-se-á vivo e «fora do controlo» enquanto existir movimentação anti-sistémica e oposição ao modo de vida que se consolidou nestes primórdios do século.
{Nota: para aqueles que tiveram a paciência de ler este lençol (já houve queixumes), tenham um bom período de Natividades; claro que para os outros, também!}
O DESASSOMBRAMENTO CONTINUARÁ com a ajuda das leituras da ponte Atlântica, entre outros, de Milton Lahuerta, Marco Aurélio Nogueira, Fernando de La Cuadra, Alessia Ansaloni, Leandro Konder, Guido Liguori, etc.