Corre-se o risco de alternar insensatamente entre euforia e depressão quem pautar a sua análise, mesmo de conjuntura, segundo as noticias da comunicação social, em particular a imprensa, especialmente as páginas de economia. Parecemos todos condenados à montanha russa dos índices da bolsa e cotações de moedas e de títulos de nome exótico. Descobrimos a todo o instante, espantados, que uma entidade sem rosto chamada "mercado", colocada acima e além das necessidades humanas, não só adquiriu a vida própria dos fetiches como até desenvolveu uma personalidade de "serial killer". Não há muito tempo, liquidou os chamados tigres asiáticos Coreia do Sul, Taiwan, Singapura, Tailândia, etc., prosseguiu lentamente para outras latitudes e instalou-se em economias débeis e periféricas, como a nossa, mau grado a pertença a um gigante de nome União Europeia.
No momento actual é inútil especular, e muito menos avaliar, por ora, a extensão da crise e a paralisia da nossa economia. Qualquer especulação nesse sentido, além do risco maníaco-depressivo, não contribuiria para esclarecer certos aspectos essenciais tanto da presente crise institucional quanto da frágil posição financeira/económica de Portugal, contaminado como está, por um tumultuoso processo de mediocridade governativa e em pleno período de eleições gerais. Desde já, podemos destacar dois desses aspectos básicos.
Em primeiro lugar, toda a crise, especialmente uma crise deste porte, tem o poder de abalar verdades estabelecidas, às vezes ferindo de morte ideias inexpugnáveis. Assim, em formações sociais como a nossa, está claramente em questão não propriamente a governação canhestra, mas certamente a forma neo-liberal sob a qual ela se impôs avassaladoramente nestes últimos anos. A centralidade da riqueza privada, em particular a financeira, foi acentuada até ao absurdo, em detrimento da coesão social, numa ofensiva impiedosa contra as diferentes formas de compromisso entre capital e trabalho obtidas por direito depois de décadas de atropelos aos direitos sociais, durante o salazarismo.
Em segundo lugar, e não menos importante, esta globalização neo-liberal trata a política como mera província da economia. Ela exige que a acção política se adapte passivamente aos requerimentos do mecanismo económico, como se fosse a única matriz de toda a racionalidade. Impotentes, as sociedades (penoso para os indivíduos que as compõem) devem submeter-se à "disciplina dos mercados", de vocação totalitária evidente. O trabalho torna-se precário e sem garantias, os direitos sociais, que levaram gerações a conquistar, são vistos como intoleráveis privilégios corporativos, a segurança social (direito inalienável) é confiada à irracionalidade exuberante da bolsa de valores.
A "sociedade aberta", para usarmos um polémico termo popperiano, torna-se o palco por excelência do economicismo vulgar, acusação que o próprio Karl Popper outrora tinha tornado clássica em relação aos governos de esquerda (maioritariamente sociais democratas). Não deixa de ser curioso este episódio da dialéctica das ideias. Para Popper, considerado um dos pontos de referência do hodierno pensamento liberal, afirmou que os marxistas cometiam um erro grosseiro na análise do sistema político e social: em suma, na teoria do Estado e da política. Segundo Popper, apesar de contribuir para o envolvimento dos trabalhadores na vida pública, o marxismo, contraditoriamente, comportava uma visão fatalista da própria acção política. A esta caberia, na melhor das hipóteses, "minorar as dores do parto", dando passagem às mudanças operadas na esfera decisiva: os meios de produção e as relações entre as classes.
Ironia das coisas! Então não é também este o papel atribuído à política pela ideologia neoliberal hoje dominante. O Estado nacional, por exemplo, é pressionado a intervir abruptamente no mercado de trabalho, destruindo direitos e deixando os indivíduos à mercê das exigências da acumulação "flexível". Um Estado, portanto, longe de qualquer resquício de neutralidade: forte em relação aos fracos, fraco em relação aos poderes fortes da sociedade. O maior ataque do neo-liberalismo foi este : a cidadania, construída no espaço dos Estados nacionais, está em vias de se tornar apenas memória - em lugar do cidadão, o consumidor. Em lugar do bilhete de identidade ou do cartão de eleitor, apenas o cartão de crédito. Entre outros, parece que foi Mário Soares que aqui há uns tempos alvitrou de que isto não pode continuar assim. Face a esta permanente fuga para a frente, sem se importarem com os excluídos, a pobreza e todos os que estão à margem do festim - podem crer - nada mais estão a fazer do que a criar o contexto adequado para fermentar os primeiros e promissores sinais de rebelião social contra os imperativos da globalização neo-liberal.
Será que pode então estar próximo um retorno da política como capacidade de controlar processos hoje considerados cegos e inexoráveis, e como esfera da invenção de uma vida a salvo do "horror económico"? E porque não acreditar que talvez nasça, como alternativa concreta, uma nova forma social democrata da globalização, se compreendermos "social democracia" num sentido arrojado e mais próximo da situação original, em que sociais democratas eram (talvez se espantem!) Marx e Engels, Bernstein e Kautsky, Rosa e Karl Liebknecht , António Sérgio e Henrique de Barros. Nenhuma semelhança, pois, com a actual falsificação generalizada do termo.
Terra de pedras esburgadas, secas/como esses sentimentos de oito séculos/de roubos e patrões, barões ou condes;/ó terra de ninguém, ninguém,ninguém:/eu te pertenço./És cabra, és badalhoca,/és mais que cachorra pelo cio,/és peste e fome e guerra e dor de coração./Eu te pertenço mas seres minha, não .(Jorge de Sena, excerto do poema A Portugal)
O DESASSOMBRAMENTO CONTINUARÁ com a ajuda das leituras da ponte Atlântica...