Foi Miguel Coutinho, no editorial do DN de 13 de Janeiro quem afirmou que os debates, ao contrário dos programas eleitorais, têm a virtude de revelar convicções e denunciar hesitações. Os debates vivem de ideias, os programas eleitorais, tal como os comícios, de generalidades. A escolha entre uns e outros não é, portanto, indiferente. (...) os dois partidos (os do rotativismo actual, digo eu!) precisam de um choque ideológico. Ou, dito de outro modo, de um tsunami de ideias. Mas como diz a minha fonte da ponte Atlântica não quero assustá-lo, amigo leitor, com antiguidades, todavia, lá terá de ser. Parecenos que anda muita gente entusiasmada com as pesquisas pré-eleitorais... puro logro!? Verdade... é que ainda não descobrimos seriamente que este país é barroco e precisa de metafísica para viver e para se movimentar. Na verdade, não nos lembramos de um outro período pré-eleitoral, onde os partidos que aspiram a governar este país, tenham uma visão tão racional, tão ampla e precisa sobre o país (este gajo só pode estar... devem dizer alguns, e tem razão). O conjunto de reformas que propõem abriga uma clara elegância de coisa nenhuma, e são de uma harmonia interna que só pode provocar uma indolente emoção. A cascata de argumentos e raciocínios que, em particular, os cabecilhas do actual governo despejam sobre nós, para além de não ter lógica porque foram eles os principais responsáveis pela situação, é gelada como uma lâmina de cutelo. Vamos ver se nos entendemos! Tentativa de explicação: o que a nossa (actual) elite política no poder, não nos conseguiu oferecer, ou não conseguiu desenhar, foi um mito correspondente às suas ambições reformadoras e refundadoras do país, provavelmente qualquer coisa que encarnasse uma aurea mediocritas.
Explique-se melhor esta história de barroco e da metafísica. Não somos barrocos apenas porque desbaratamos uma imensa riqueza nos altares da crendice. A visão de mundo do barroco materializava, nos séculos XVII e XVIII, uma "vontade de crer", uma ânsia de sentidos e significados estáveis para a vida, diante dos estragos relativistas da racionalidade, da ciência nascente e da incerteza quanto à nossa salvação eterna. O avanço da razão e das ideias recheava de dúvidas o mundo, e o barroco organizava a estratégia de reconstituição de um quadro de valores vitais, reclamando da metafísica um enorme esforço reflexivo para a fixação de significados claros para a vida. Ciente da precariedade da própria metafísica, enquanto exercício da razão, o barroco mobilizava a arte para a certificação sensorial destes valores. Daí a sua gesticulação exagerada, torturada, espectaculosa, testemunhal, destinada a conferir veracidade aos valores que dificilmente podiam ser afirmados no campo exclusivo da razão.
Suprema ironia! Sem mostrarmos qualquer arrependimento, somos barrocos porque vivemos num país e duvidamos dele. E o pior é que temos razões para isso. Duvidamos do seu destino, sempre cercado de precariedade e marcado pela exploração, pela injustiça, pela falta de desenvolvimento, pela contaminação da mediocridade. Mas chegámos ao fim da linha: não podemos esperar nenhuma salvação fora dele. Desbaratámos três impérios mais o dinheiro dos contribuintes europeus. O seu fracasso é o nosso fracasso e a nossa perdição. Precisamos de acreditar nele, encontrar para ele um significado e um destino, e por mais que nos custe, isto não é só tarefa para as frias lâminas da razão. Não há encoberto que nos valha. Precisamos é de um mito sobre o país, de uma imaginação que nos devolva permanentemente a candura nas suas possibilidades, por mais irracionais que pareçam. Precisamos de um mito que nos envolva e arrebate, e justifique esta vida de misérias e sacrifícios no quotidiano. E necessitamos dos gestos autênticos, de manifestações concretas, pictóricas, sensoriais, que tornem este mito presente, visível, material e eficaz.
Os nossos patrícios da restante Ibéria ergueram-se com um mito: o de um país com liberdade, vontade e organização. Mas este mito, e qualquer um, seria reles mentira se a realidade nada tivesse a ver com ele. Por isso ele não foi para os povos da Espanha (como não deve ser para nós) produzido por técnicas de manipulação simbólica. Só existe como o desenho vivo de um conjunto de valores exigentes, que sincronize e empolgue os governos e a sociedade. Claro que necessitamos de refundar a nossa vida, mas para tal não precisamos de uma ruptura com a nossa história, devemos é redefinir o nosso mito nacional, reconstruindo-o de modo mais poderoso e envolvente, isto é, a nova epopeia das descobertas tem que ser cá dentro educação, qualificação, majoramento dos recursos. Foi o que não se fez até hoje. A maior parte da actual elite política esqueceu-se (provavelmente nunca aprendeu) que o país precisa de ser vivido como uma epopeia colectiva, não apenas como desvairada passerelle de eunucos. Não foi de admirar este alvoroço da politiquice na escolha de cinzentos parlamentares. Parafraseando as minhas fontes do DESASSOMBRAMENTO: à medida que se aproximam as eleições, vamos assumindo cada vez mais a condição de animais metafísicos e angélicos barrocos. Ninguém parece ter ainda rasgado o véu do que precisamos. Nem a razão! Só um tsunami de ideias...
Acuso-te, Destino! /A própria abelha às vezes se alimenta / Do mel que fabricou.../ E eu leio o que escrevi / Como um notário um testamento alheio./ Esvazio o coração, cuido que me exprimi, / E vou a olhar o poço, e ele continua cheio! / Acuso-te e protesto. / É manifesto / Que existe malvadez ou má vontade! / Com a mais humilíssima humildade, / Requeiro, peço, imploro... / Mas trago às costas esta maldição / De sofrer com razão ou sem razão, / E de não ter alívio nas lágrimas que choro! (Miguel Torga, «Penas do Purgatório». Coimbra, Ed. Autor, 1954; 3.ª ed. 1976)
O DESASSOMBRAMENTO CONTINUARÁ com a ajuda das leituras da ponte Atlântica...