O padre António Vieira, homem de invulgar inteligência, cometeu um grave erro: supôs que os outros eram dotados de igual inteligência e o compreenderiam. Como sabemos, os seus textos revelam uma fina ironia política, civilizada e desdenham a ironia do absurdo, até porque a metáfora do mundo é tão sublime que não há lugar para o absurdo. "Demócrito ria, porque todas as coisas humanas lhe pareciam ignorâncias; Heraclito chorava, porque todas lhe pareciam misérias: logo maior razão tinha Heraclito de chorar, que Demócrito de rir; porque neste mundo há muitas misérias que não são ignorâncias, e não há ignorância que não seja miséria". Ou então, "O polvo com aquele seu cabelo na cabeça, parece um monge; com aqueles seus ralos estendidos, parece uma estrela; com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura, a mesma mansidão. E debaixo dessa aparência tão modesta ou dessa hipocrisia tão santa, testemunham constantemente (...) que o dito polvo é o maior traidor do mar." O Mundo cada vez mais sufoca pelo abraço do polvo, ou seja, cada vez mais a prepotência dos grandes que, como peixes, vivem do sacrifício de muitos pequenos, os quais "engolem "e "devoram". Para Vieira, no século XVII, o tempo futuro poderia ser narrado pois já estava inscrito no Infinito Divino (como proposto por Santo Agostinho e São Tomás), mesmo que dependente das causas segundas - a acção do homem podia ser estabelecida dentro do livre-arbítrio. Vieira, porém, acreditava na inexorabilidade do tempo, visto como um vector linear, o que expressa por meio de tropos que indicam, como no Sermão do Mandato, de 1643, a sua acção corrosiva que "tudo gasta, tudo digere, tudo acaba.". Tudo isto já vai longo, imagine-se para falar do poder dominante no Mundo de hoje. Não podemos narrar como Vieira nem o que Vieira teria dito sobre o devir de hoje, pois, em primeiro lugar, estamos num momento diferente (o mundo actual), e segundo, porque a nossa práxis e a nossa linguagem vai buscar um discurso (confundindo, propositadamente, discurso e pensamento) organizado numa percepção histórica que se baseia nos factos e nas evidências. Digo isto, não só a meu respeito como do meu amigo Hugo Fernandez, porque é dele o texto que se segue.
BRINCAR COM O FOGO
Agora é oficial. A Casa Branca veio há uns dias finalmente reconhecer a inexistência de armas de destruição maciça no Iraque. Depois de tudo o que se passou, tal facto não espantará, certamente, muitas pessoas. Mas o que este reconhecimento tem de patético e simultaneamente de intolerável é que foi precisamente sob esse pretexto que os E.U.A empreenderam a sua cruzada justiceira contra o Eixo do Mal, invadindo um país soberano, provocando a destruição de uma parte significativa do seu milenar legado cultural e das suas infraestruturas apenas aquelas, note-se, que não interessavam manter para assegurar a rapina eficaz dos recursos energéticos de que o território iraquiano é, como se sabe, pródigo , levando à desorganização social e económica de uma sociedade e, principalmente, à morte de milhares de pessoas (fala-se em perto de 150.000).
Afinal, não houve justificação para a guerra; pelo menos aquela que os próprios americanos nos quiseram impingir. Afinal Saddam Hussein não constituía nenhum perigo real para a região e muito menos, como se apregoou ad nauseum, para o mundo. Se o regime de Saddam era uma ameaça para alguém, era para o seu próprio povo. E em relação a este, nunca os E.U.A mostraram qualquer compaixão, apoiando activamente o ditador Saddam e chegando mesmo a vender-lhe as armas que vieram a ser utilizadas na sua repressão. Aliás, o apoio dos E.U.A a regimes ditatoriais na defesa dos seus interesses, tem sido uma constante da política externa norte-americana.
Quase dois anos depois de Colin Powell ter exibido provas irrefutáveis de que o Iraque possuía armamento químico e biológico, a trágica verdade vem ao de cima. Que vergonha, que desastre! Principal mote da cimeira da guerra nos Açores, o armamento iraquiano alimentou meses de intoxicação da opinião pública e desabrido ataque a todos aqueles que denunciavam as mentiras made in Washington e as verdadeiras intenções americanas. Onde estão esses corifeus de Bush agora? Quem não se lembra, no caso português, das certezas do nosso ex-primeiro-ministro desertor Durão Barroso que, em Londres, junto de Tony Blair, asseverou ter visto essas provas. Quem não se lembra do entusiasmo televisivo dos soldadinhos de Paulo Portas a comentar o evoluir da movimentação das tropas americanas em solo iraquiano. Quem poderá alguma vez esquecer as maquetes de aviões e carros blindados como se se tratasse de uma ingénua brincadeira de meninos apresentadas sem escrúpulos, nem pudor, pelo especialista Nuno Rogeiro nos nossos ecrãs.
Ainda assim, o porta-voz da Casa Branca, Scott McClellan reafirmou que o regime [de Saddam] tinha a intenção e as capacidades necessárias no que respeita a armas de destruição maciça. Pasme-se! Já não são precisos actos; bastam intenções. Não precisa de haver ameaças concretas. Basta julgar-se que existe vontade nesse sentido. É a inacreditável doutrina da guerra preventiva em todo o seu esplendor. A tortuosidade de tal raciocínio só encontra paralelo com o que há de mais característico no pensamento fundamentalista: fanatismo, maniqueísmo e absoluto desprezo pelos outros.
Com esta política de George W. Bush e do seu governo, o mundo ficou mais inseguro, mais violento e mais injusto, potenciando o ódio e ressentimento a uma tal escala, que o fenómeno do terrorismo se universalizou. Aliás, num relatório recente emanado do insuspeito National Intelligence Council, organismo de informações que assessora a CIA, concluiu-se que, desde a invasão americana, o Iraque se tornou num campo de treino para terroristas em substituição do Afeganistão e que o sentimento extremista e fundamentalista tinham aumentado exponencialmente. A administração Bush desrespeitou as leis internacionais, invadiu países soberanos, provocou a destruição e o caos, espalhou a morte indiscriminada de pessoas. Baseou a sua acção no mais absoluto unilateralismo e na obsessão messiânica da luta do Bem contra o Mal. Bin Laden não teria feito melhor. Quem é esta gente? O que pretendem, afinal?