DESASSOMBRAMENTO... parte infinita!
Para além da actualidade de BOLONHA, existe entre nós (há anos) uma discussão recorrente, premente e eivada, que mesmo quando vem à tona de modo velado e contido inquieta estudantes, professores e pessoas envolvidas com a educação, a formação e os programas curriculares: devem as ESCOLAS (particularmente o ensino superior) e os seus cursos formar bons profissionais ou bons cidadãos? Trata-se, claro, de um tema que, deixado como pura polarização exclusiva, não faz muito sentido. Afinal, não está dito que o bom profissional e o bom cidadão se dissociem ou não possam caminhar juntos. Ao contrário, tudo leva a que se conclua que o profissional só pode ser efectivamente «bom» (isto é, competente, equilibrado, eticamente consistente) se for um «bom cidadão», isto é, se souber colar à sua actividade a perspectiva de pertença a uma comunidade. Porém, dado que vivemos numa época que tende a canonizar o mercado e a competição (e portanto a congelar o êxito profissional nele mesmo, cortando os seus vínculos com a cidadania), vale a pena não desprezar a contraposição. E, com base nela, perguntar se não nos devíamos esforçar mais para fazer com que a formação para a cidadania prevaleça sobre a profissionalização, especialmente quando desejamos encontrar um eixo capaz de estruturar o ensino e a escola.
O próprio modo de propor o tema, aliás, parece-nos já provocar uma contrariedade com a época e a sua cultura. Em clima de «globalização» e de radicalização do mercado, do individualismo e do esvaziamento utópico, não se vislumbra uma forma de impedir que as instituições da política e da cidadania sejam desvalorizadas. Com isso, torna-se mais difícil conseguir que as pessoas saiam da sua rotina calculista e competitiva para abraçar preocupações mais afeitas à «paixão», aos valores e ideologias, ao futuro, às opções gerais e à responsabilidade para com os demais. É o que podemos chamar de «despolitização»: desinteresse em pensar os temas fundamentais da existência colectiva. As questões políticas tornam-se, assim, assunto de especialistas e de políticos profissionais ( maioritariamente de duvidosa competência). Com o que se alarga o hiato que separa os indivíduos dos problemas básicos da sua sociedade e do seu Estado. Os cidadãos tornam-se personagens que certamente sabem os seus direitos mas minimizam as suas obrigações, pondo-se contra o governar, o poder, o lutar (por ideias e por interesses), o participar, o viver colectivo.
Atenção! Somos protagonistas de um mundo complexo, no qual as fronteiras do saber se modificaram muito. Não nos podemos contentar em dominar algumas técnicas e informações: precisamos de ir além, ser capazes de pensar criticamente e assimilar recursos intelectuais abrangentes. Precisamos, também, de aprender a trabalhar em termos prospectivos e de projectos de (e no) mundo. Não basta receber algumas pinceladas de razão instrumental ou adquirir «disciplina» para enfrentar o mercado. Devemos ser mais ambiciosos. Sabemos bem que a capacidade crítica de ver o mundo não se aprende na escola: nasce da vida e da práxis real. Na escola (em toda a escola, não só nos seus estágios mais avançados), porém, podemos acelerar e refinar esse processo, e isso desde que o ensino não seja reduzido a mero tirocínio técnico para a competição profissional. Caso contrário, a aprendizagem formal esvazia-se de sentido maior.
A politização não pode ser só a perspectiva do governo, nem dos profissionais da política: tem que ser assumidamente a perspectiva dos interesses sociais e da Polis. Com ela, temos melhores condições de pensar a sociedade em que vivemos e de avaliar as chances que possuímos de construir um mundo melhor, com governos melhores inclusivamente, mas sobretudo com pessoas melhores. A perspectiva da política permite que se mantenha vivo na agenda o problema de saber quem somos, por que estamos juntos e que objectivos desejamos alcançar (gostávamos de repetir algumas vezes esta frase). Permite que sejamos capazes de analisar os interesses que devem prevalecer entre nós, o padrão de desenvolvimento e de justiça social em que queremos viver, as acções a serem empreendidas para que se estabeleçam as bases da dominação e do consentimento...
Avivo no teu rosto o rosto que me deste, / E torno mais real o rosto que de dou. / Mostro aos olhos que não te desfigura / Quem te desfigurou. / Criatura da tua criatura, / Serás sempre o que sou. / E eu sou a liberdade dum perfil / Desenhado no mar. / Ondulo e permaneço. / Cavo, remo, imagino, / E descubro na bruma o meu destino / Que de antemão conheço: / Teimoso aventureiro da ilusão, / Surdo às razões do tempo e da fortuna, / Achar sem nunca achar o que procuro, / Exilado / Na gávea do futuro, / Mais alta ainda do que no passado.
(Miguel Torga, Portugal, in Antologia Poética, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 5.ª ed., 1999)
O DESASSOMBRAMENTO CONTINUARÁ...Milton Lahuerta, Fernando de La Cuadra, Aurélio Nogueira, Alessia Ansaloni, Leandro Konder, Guido Liguori, etc.