A propósito dos vários “choques” já anunciados e pouco enunciados, ocorreu-nos a ideia de propor a quem estiver interessado (os “militontos”, por razões óbvias, não lhes deve interessar!), uma ideia que colhi através da leitura de um livro que considero interessante, cujo autor é Aurélio de Oliveira (Em defesa da polÃtica)* e que no momento actual faz todo o sentido, isto é, a urgência de uma PolÃtica de Choque onde, inevitavelmente, tenha lugar um inequÃvoco choque de polÃtica - um choque que abane os interesses das ... A ideia, é mais ou menos esta que se segue: Pese embora toda a expectativa que cerca as eleições, os acontecimentos e as turbulências das últimas semanas deixaram claro que a polÃtica está na berlinda: “contemplada” com desconfiança e temor, como se trouxesse consigo mil e um factores de instabilidade, irracionalismo e, claro, “risco” – situação inigualável até agora na democracia portuguesa.
Há uma grande falta de confiança na polÃtica em si, mas a desconfiança é ainda maior nos polÃticos. A estes, indiscriminadamente, são dirigidas as crÃticas mais duras, as frustrações mais profundas, a indignação moral mais plangente. Não dando sinais de arrepiar caminho, embora nos custa dizer isto, não há que esperar muita coisa deles, agarrados que estão aos seus interesses mesquinhos, tÃpicos da “classe polÃtica”, tendentes, portanto, a afastar-se das pessoas “comuns” ou a aproximar-se delas apenas com a intenção de capturar votos. O quadro não é mesmo nada animador. Impropérios, acusações mesquinhas, vitimização sues, denúncias em cascata, discursos pobres e repetitivos, escolhas discutÃveis, marketing por todo lado. Há como que uma crise geral de legitimidade, um buraco separando o “social” do “polÃtico”.
O que é que se passa? O campo da polÃtica está hoje contaminado por três blocos de problemas. Primeiro: com a globalização da comunicação, a velocidade, a quantidade e a variedade das informações, o surgimento de uma cultura mais individualista, voluntarista e niilista, a democracia representativa desgastou-se e ficou mais tensa a relação das pessoas com a polÃtica. Segundo: as alterações estruturais na organização económica e social, particularmente no que diz respeito à conformação dos grupos e classes sociais, esvaziaram a polÃtica dos grandes sujeitos. Terceiro: o mercado e a economia transbordaram os limites do razoável, e colonizaram o todo. Junto com o extraordinário protagonismo dos média, condicionaram a polÃtica, fazendo com que o “ver” ficasse mais importante que o “pensar” e padronizando o debate democrático. Diante desta polÃtica orientada por critérios de mercado, o cidadão sente-se um estranho, um consumidor qualquer, ou mesmo um pacóvio, tratado como criança.
Nos últimos tempos, face aos actuais protagonistas da polÃtica, evoluÃmos sem muito esforço para predizer a polÃtica e maldizer a actividade polÃtica. Junte-se a isto a afirmação de um padrão incompetente de governo, concentrado na pseudo-estabilidade do défice, na redução do “peso” do Estado (quando o problema não é de despesa mas de investimento e de gestão de recursos), foi-se difundindo a ideia de que a polÃtica “atrapalha”, que a oposição e a crÃtica, que se querem actuantes, são armas destrutivas, e assim por diante. Embora não o pareça, presenciamos, entre nós, muita apatia e indiferença (veja-se o que aconteceu no PSD – como foi possÃvel a massa cinzenta de qualidade neste partido, deixar que esta gente chegasse onde chegou?), misturada com uma frenética movimentação e muita crÃtica sem direcção. O estado de espÃrito geral é falsamente moralista e defensivo. Há pouco debate polÃtico e excessiva discussão rasca.
Com isto, os (pretensos) polÃticos acabam por ser arregimentados pelo lado mais perverso da polÃtica, o do favor, da fraude, da dissimulação. Não conseguem actualizar-se nem confirmar-se como verdadeiros representantes dos cidadãos (alguém já disse “A classe polÃtica é hoje menos qualificada que muitas das elites e por vezes não percebe a dimensão dos problemas e a forma de os resolver”). Perdem consideração junto dos cidadãos e são incapazes de fazer alguma coisa para melhorar o seu desmpenho. É como um cÃrculo vicioso: desta forma, o desprezo pela polÃtica é uma reacção contra a crise da polÃtica e um factor a mais de reprodução desta crise.
No fundo, os polÃticos precisam de um “choque” de polÃtica: precisam de mais polÃtica, não de menos. Eles e a polÃtica como um todo, aliás. Ganharemos muito se toda a sociedade - importa dizer, os cidadãos, os grupos, as classes sociais, as instituições - vier a ser dramatizada pela polÃtica. Pela grande polÃtica, entendamo-nos. A grande polÃtica é uma aposta na vida colectiva, na instituição de um poder democrático que viabilize o melhor governo e distribua justiça. Como afirma Aurélio de Oliveira, «É “polÃtica com muita polÃtica”: polÃtica dos cidadãos. Por expressar uma construção delicada, a grande polÃtica está sempre desafiada, ou pela polÃtica que se volta para o poder, a autoridade, a coerção, ou pela polÃtica que usa e abusa da técnica, dos saberes especializados: a “polÃtica com pouca polÃtica” (a de tantos polÃticos profissionais) e a “polÃtica sem polÃtica” (a dos técnicos)».
O ideal seria que estas três formas de polÃtica convergissem e se completassem reciprocamente, sob o comando da “polÃtica dos cidadãos”. Como isto de facto não ocorre, a polÃtica dos polÃticos e também a dos técnicos ficam desligadas e desconcertadas do núcleo fundamental da vida colectiva, voltando-se contra os cidadãos. É o que acontece hoje. O quadro, portanto, é de crise e desarranjo. Mas não de “fim” da polÃtica. Face à confusão social, ao enfraquecimento da polÃtica e do Estado, emergem formas novas de envolvimento com as questões públicas, de participação, de resistência. São formas novas de polÃtica, que podem ser fundamentais para a recuperação da ideia mesma de polÃtica e para o reencontro das tradições despedaçadas ou momentaneamente neutralizadas.
Por muito tempo achei que a ausência é falta. / E lastimava, ignorante, a falta. / Hoje não a lastimo. / Não há falta na ausência. / A ausência é um estar em mim. / E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços, / que rio e danço e invento exclamações alegres, / porque a ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim. (Carlos Drumond de Andrade, Ausência)
(*) Aurélio Nogueira é professor de PolÃtica na Unesp/Araraquara e autor, entre outros livros, de As possibilidades da polÃtica: ideias para a reforma democrática do Estado (Paz e Terra, 1998) , Em defesa da polÃtica (Senac São Paulo, 2001) e Um Estado para a sociedade civil. Temas éticos e polÃticos da gestão democrática (Ed. Cortez, São Paulo, 2004).