Os principais dirigentes do BE teimosamente por estratégia não querem fazer a descoberta de que existe vida fora do seu território ou dos espaços formais que a ortodoxia costuma atribuir à esquerda. Também teimosamente por estratégia ainda não assumiram que o BE já não tem idade para continuar a ser o partido "intra-uterino" que precisa de se afirmar a todo instante como único e verdadeiro representante dos injustiçados, contra a parte intransigente dos detentores do aparelho de Estado. Sem essas teimosias tem que se apresentar mais tranquilo, mais convencido da sua força e mais afinado com as exigências da política (democrática). Mais aberto, por isso mesmo, para abraçar questões que até recentemente eram vistas como alheias ao seu programa e à sua filosofia. Como a das alianças.
Como sabemos, o problema das alianças é crucial na política portuguesa. Quem as concebe atabalhoadamente ou de modo tosco, tanto quanto quem as rejeita in limine ou por princípio, dá-se invariavelmente mal. Pode até crescer - como é o caso do próprio BE, até agora bem sucedido projecto partidário - , mas não consegue (teimosamente) posicionar-se como real alternativa de poder nem acrescentar experiência de governo. Bem sabemos que fazer alianças, na política, diria mais na sociedade portuguesa, é uma imposição e, paradoxalmente, um desafio na vida: das abismais diferenças sociais, da cidadania politicamente deseducada, do sistema político desenhado para abater o eleitor (o eleitor ao eleger o eleito nunca mais lhe põe a vista em cima, só pela pantalha!) e pulverizar a representação, dos seguidos ciclos da improficiência, da fragmentação da sociedade civil, do rápido assentamento da política espectáculo. Os senhores do BE têm que abandonar essa soberba e perceber que coligar-se, entre nós, é uma condição natural da política.
Mas existem alianças e alianças. Há aquelas que são feitas apenas para contabilizar votos e arregimentar recursos de campanha. Há as que visam tão somente conseguir calaceirar para chegar ao posto almejado. Invariavelmente, estão despojadas de maior grandeza ou densidade, mas infelizmente conseguem... Para os verdadeiramente democratas e para a esquerda, porém, uma aliança precisa de fazer sentido substantivo, e assim tem que ser, não pode ser mera expressão de uma aritmética eleitoral, como invariavelmente tem acontecido na política portuguesa, veja-se os que estão demissionários. Não pode ser apenas a união circunstancial dos que são contra, mas deve assentar sobre uma proposta positiva de futuro. Tem de demonstrar um eixo programático de larga respiração. Ser uma alternativa para chegar ao poder, mas também um instrumento para governar. Em suma, ser tanto um recurso para ganhar eficácia política quanto um elemento de civilidade e pedagogia política. Justamente por isso, alianças, para a esquerda (já chega de limianos), é algo que tem que ser construído por parceiros dotados de personalidade política e programática bem clara e capazes de se respeitar nas suas especificidades. É uma unidade de coisas diversas que exige a mais completa transparência e que se equilibra numa delicada dialéctica de tolerância e firmeza. Incontestavelmente tem que ser uma operação para gente com sentido de responsabilidade, já convencida da sua identidade e já tratada pelos outros como tal. Uma operação para partidos que já saíram do útero, que se põem diante do Estado como um outro todo, ou seja, como um protagonista capaz de afirmar um programa para toda a sociedade, e não apenas para os seus nichos de eleitores. Um protagonista responsável, disposto a algum "sacrifício" em nome de um objectivo maior.
E é precisamente neste ponto que o BE deverá demonstrar que a sua disposição de mudar é mesmo concludente. Não basta apelidar-se de esquerda para estar à esquerda. Ser de esquerda não é ser contra o governo do Santana ou de outro incompetente qualquer, até mesmo porque há muitos sectores de direita que também o são. Ser de esquerda é bem mais do que isso: é atestar e difundir uma opinião sobre o futuro, uma utopia, um desenho de sociedade mais justa, uma proposta de governo diferenciado, uma nova forma de pensar e gerir a economia, uma nova escala de valores e ideais. É ir além da gestão dos interesses do capitalismo. É responder aos desafios interpostos à sociedade pela "grande transformação" que vem adjacente com a globalização económica, a sociedade informacional e a revolução tecnológica. Ser de esquerda, em suma, é definir de modo crítico, realista e criterioso (ou seja, não doutrinário) um "modelo" de socialismo e um caminho para viabilizá-lo. Coisa que o BE, proclamando-se de esquerda, tem ainda medo, receio ou relutância em fazer e que, como sabemos, esteve sempre longe de ter sido feito pelos demais postulantes da "frente de esquerda" que corporizam o BE.
Sem uma melhor circunscrição do que é ser de esquerda hoje, nesta sociedade contaminada, onde algumas forças partidárias, por força dos seus actuais agentes, teimam em prosseguir na maior rasquice até hoje nunca vista numa campanha eleitoral, o futuro continuará tão cinzento e imperscrutável quanto antes. Pior: à custa desta mediocridade, deste abaixamento e degradação discursiva, a sociedade continuará sem saber o que as forças de esquerda pretendem fazer com ela amanhã.
Nisso, como em tantos outros aspectos, o Portugal de hoje prolonga o antigo regime. A não-inscrição não data de agora, é um velho hábito que vem sobretudo da recusa imposta ao indivíduo de se inscrever. Porque inscrever implica acção, afirmação, decisão com as quais o indivíduo conquista autonomia e sentido para a sua existência. Foi o salazarismo que nos ensinou a irresponsabilidade reduzindo-nos a crianças, crianças grandes, adultos infantilizados. O 25 de Abril abriu um processo complexo de luta intensa contra a não-inscrição, pelo menos num plano restrito, com os governos provisórios a tomarem medidas «definitivas», a criarem «factos (leis, instituições) irreversíveis» antes de caírem, na ânsia desesperada de deixarem obra feita, indestrutível, com a qual contribuiriam para a construção da nova sociedade. Simplesmente, o substrato da não-inscrição continuava vivo, e toda essa actividade frenética e delirante para inscrever a Revolução escrevendo a História não fazia mais do que alimentar a impossibilidade de inscrever, essa sim, inscrita no mais profundo (ou à superfície inteira) dos inconscientes dos portugueses. José Gil, O país da não-inscrição in Portugal, hoje. O medo de existir, Lisboa: Relógio dÁgua, 2004, pp. 15-23
O DESASSOMBRAMENTO CONTINUARÁ com a ajuda das leituras da ponte Atlântica, entre outros, de Milton Lahuerta, Marco Aurélio Nogueira, Fernando de La Cuadra, Alessia Ansaloni, Leandro Konder, Guido Liguori, etc.