No momento presente faz todo o sentido a firmação de Aurélio Nogueira, ou seja, como forma de olhar a política, as pesquisas eleitorais dizem muito, mas falam pouco. Os números que alardeiam o PS na dianteira, com mais de 15 pontos à frente do segundo partido, onde se emolam Santana & Cª, mostram à evidência que o principal responsável do PS até não é preciso tirar trunfos preciosos: a sua longa exposição aos média, o seu temperamento político e, sobretudo, a oportunidade de capturar o difuso espírito oposicionista que parece ter tomado conta da população, pelo menos neste momento. A questão é como administrará este património daqui para a frente? Os números são tão expressivos que acabam por estimular diferentes fantasias e visões conspiratórias. Há alguns analistas que neles se respaldam para prever a abertura, pelo sistema, de uma inescrupulosa caixa de maldades contra o próximo primeiro-ministro deste país contaminado: quanto mais crescerem os números, dizem, ao mesmo tempo que aumenta a sua responsabilidade, maior será o seu trambolhão. Outros analistas apressam-se em recordar que, nas últimas três eleições, as previsões das sondagens se desfizeram por completo à medida que as urnas se foram abrindo. Em função disto, dizem, é melhor não haver muita excitação antes da hora.
A política é móvel e dinâmica, além de pouco previsível. Apesar de sabermos disto, vivemos enfeitiçados pelas ilusões das estatísticas e tendemos a confundi-las com os nossos desejos e receios. Passamos a atribuir aos números o poder quase mágico de anunciar o futuro, e vamos permitindo que eles fiquem poderosos demais. Esquecemos que bastaria um facto forte para apagar as estrelas ou pôr no céu quem estava no inferno. Sondagens eleitorais são sempre bem-vindas. Elas fornecem-nos um importante recurso de análise. Como sabemos (existe muita escrita sobre o assunto), no actual panorama político/eleitoral português, se algum problema existe, ele não vem das pesquisas, mas dos políticos e do sistema com que se disputam as eleições. Os políticos mais uma vez recuaram e entregaram a direcção do espectáculo aos especialistas em marketing, o que chegou aos eleitores? Produtos-padrão, vendidos como um outro qualquer. As estratégias foram dedicadas primordialmente a burilar imagens, efeitos e conceitos, no fundo, embalagens. Os conteúdos importaram menos. Os números iam complementando isto e passaram a ser cortejados sofregamente.
Perante esta realidade, uma campanha eleitoral não passa de uma encenação Bufa. Uma falha de comunicação, uma frase aparvalhada, uma foto inoportuna, um escorregão inesperado, um inocente aperto de mão, um detalhe esquecido (ou acrescentado) na biografia, qualquer baboseira é susceptível de deitar tudo ladeira abaixo. No fundo, todos tendem a não se afastar muito de um ponto óptimo de campanha, reforçando as estratégias mercadológicas, as frases estudadas, os sorrisos de rotina. Uma boa imagem torna-se fundamental. Um fait-divers bem assestado vale ouro. A escolha correcta do inimigo passa a ser decisiva. Ao mesmo tempo, como os espaços de manobra vão ficando apertados, todos procuram, como podem, atamancar os seus discursos, recheando-os com obstinadas acusações aos adversários. É a anticampanha oprimindo a campanha, o ataque aos outros combinando-se com o disfarce de si próprio, as escaramuças pseudo-moralistas e imagéticas ganhando mais peso que o debate democrático.
O pior é que isto aconteceu e tomou conta do processo eleitoral. Mais uma vez perdeu-se uma bela oportunidade de injectar qualidade à política nacional e de permitir a plena explicitação das posições dos partidos e respectivos programas eleitorais. Disseram pouco à sociedade. Mais uma vez perderam a oportunidade de protagonizarem um grande debate político. Se o marketing, o pseudo-moralismo, as caixas de maldades, a imagem em si, se superpuseram à luta de opiniões e ao diálogo com a sociedade, nada mais foi do que a vitória da forma sobre o conteúdo. Reafirmou-se um padrão de política, cinzento, e não se construiu nenhuma ponte para projectar o país no futuro.
Quando o luto não vem inscrever no real a perda de um laço afectivo (de uma força), o morto e a morte virão assombrar os vivos sem descanso.Num outro aspecto ainda, a não-inscrição parece mais grave por não se ter liquidado a si própria, já que a herdámos também do salazarismo. Se, num certo sentido, se disse até há pouco (hoje diz-se menos) que «nada mudou» apesar das liberdades conquistadas, é porque muito se herdou e se mantém das antigas inércias e mentalidades da época da ditadura: desde o medo, que sobrevive com outras formas, à «irresponsabilidade» que predomina ainda nos comportamentos dos portugueses. Com efeito, no tempo de Salazar «nada acontecia» por excelência. Atolada num mal difuso e omnipresente, a existência individual não chegava sequer a vir à tona da vida. E o que era uma vida, nesse tempo? Aquilo que ditava o ideal moral do salazarismo: uma sucessão de actos obscuros, com tanto mais valor quanto se faziam modestos, humildes, despercebidos Onde inscrevê-los, se não havia espaço público e tempo colectivo visíveis; onde, senão na eternidade muda das almas, segundo a visão católica própria de Salazar? José Gil, O país da não-inscrição, in Portugal, hoje. O medo de existir, Lisboa: Relógio dÁgua, 2004, pp. 15-23
O DESASSOMBRAMENTO CONTINUARÁ ... Milton Lahuerta, Marco Aurélio Nogueira, Fernando de La Cuadra, Alessia Ansaloni, Leandro Konder, Guido Liguori, etc.