O tema do Choque Tecnológico traz consigo, de modo inevitável, também a controvérsia da democracia electrónica. Hodiernamente, acredita-se que a maior facilidade de receber informações e emitir opiniões levaria o cidadão a participar com mais intensidade na vida da polis. Estaríamos a entrar numa espécie de ágora virtual, onde os membros da comunidade, tal como os antigos gregos, apresentariam as suas ideias e aprovariam as propostas que viessem a ser feitas pelos diversos proponentes. A democracia assumiria a forma da democracia directa e os representantes seriam levados a tornar- se virtuais, a viver conectados permanentemente com as suas bases, acabando por ser, desta forma, dirigidos por elas. Todos deliberariam sobre tudo a todo o momento.
Independentemente de se questionar a validade da ideia, não é difícil perceber que ela está a camuflar parte da realidade. Não se confessa, por exemplo, que o cidadão electrónico, conectado e navegante, é alguém que pode espernear, votar e escolher, mas vê reduzidas as hipóteses de ser protagonista na construção da comunidade. É que ele actua num quadro demarcado por uma forma específica de política: a política espectáculo. A democracia requer um tipo específico de sujeito: o cidadão activo, sintonizado com a sua época, em condições de igualdade com os demais e disposto a participar politicamente. Será que as novas tecnologias ajudam a criar este cidadão? De que modo: facilitando o seu acesso a informações ou dando-lhe também mais e melhores condições de se envolver com o inteiro processo da decisão política? Há muita gente a acreditar piamente que a telepolítica é democratizante e educativa, graças à sua capacidade de atingir grandes massas de criaturas e facilitar o acesso dos partidos e candidatos (mesmo os mais decrépitos ou medíocres) a um eleitorado sempre mais difícil de ser alcançado. Poucas vezes se analisa criticamente a questão. Não se destacam os aspectos problemáticos, com os quais a política é aviltada e banalizada, onde os seus ritos e rotinas são subvertidos, e de certa forma perde os seus melhores protagonistas e os seus procedimentos mais típicos... e não se pense que é apenas uma questão de adaptação.
No reino da telepolítica, a democracia é abalada por aquilo que Paul Virilio chamou de tirania do tempo real, que transforma todos em espectadores e desta forma substitui o esforço de reflexão pela dinâmica passiva dos reflexos. Do mesmo modo, o debate público deixa de se fazer com base em posições substantivas, e assenta em estratégias de marketing, jogos de cena, administração do tempo e da imagem. Não é propriamente um debate, uma vez que não se deseja argumentar nem educar, apenas induzir. Vão-se assim diluindo a relevância e o sentido das instituições e dos espaços públicos. O convite é para que se abandonem ou não se recriem tais espaços. Não se trata, é óbvio, nem de negar o valor do acesso a informações, nem de ignorar a dimensão positiva das novas tecnologias. Mas será que elas, por si só, ao tornar tecnicamente possível o ingresso mais imediato dos cidadãos no circuito proposta/decisão/controlo, poderão ajudar-nos a inventar a democracia de que necessitamos?
Todavia, ATENÇÃO! Actualmente, face a estes desafios em caso algum devemos ignorar a chamada exclusão digital. Hoje, a imensa maioria da população está afastada das novas tecnologias e vai sendo prejudicada por elas, que criam barreiras atrás de barreiras. E porquê? Porque vive a vida digital de modo embevecido, alienado e passivo. Há pouca interactividade real. Por contraproducente que possa parecer, caso se concretize, a grande maioria está longe de fruir as vantagens de um choque tecnológico ou ingressar na ágora virtual. A conectividade ainda é privilégio de certas camadas da população. Contudo, o trabalho neste domínio tem que rapidamente começar a ser feito é uma questão de presente e de futuro. Se quisermos mesmo aproveitar os benefícios das novas tecnologias, teremos de desencadear uma maciça campanha educacional, para que se dissemine o uso do computador e se crie uma cultura electrónica crítica e consistente. Contudo, não se pense que despejando as máquinas na escola ou na sala de aula que o problema fica resolvido. Puro engano! Com formação, critério e estratégia, acima de tudo, será indispensável conectar o sistema escolar, desde a base, e antes de tudo a escola pública, lugar democrático por excelência, onde se educam as grandes maiorias. Como enunciam as minhas leituras do desassombramento - não poderá haver cidadão electrónico enquanto houver analfabetismo digital. E a alfabetização digital não passará de uma nova forma de opressão e alienação se não for acompanhada de educação política. Ou seja, a mesma velha e boa história de sempre.
Qualquer coisa de não formado, de tosco, de não acabado pertence ainda à cultura portuguesa de hoje. Qualquer coisa que, no entanto, perdeu a força diante da extraordinária produção cultural popular, que foi absorvendo o fundo bárbaro sem nunca o esgotar, sem nunca o transferir para formas civilizacionais. (...) Entorpecimento, gozo, violência do grosseiro. E, por cima, à superfície, a proliferação progressiva de formas de cultura (nomeadamente popular), com que se procura preencher a ausência (e proteger-se contra o vazio). Nos interiores das casas, as pequenas coisas cobrem paredes, mesas, janelas, o mais pequeno espaço numa prateleira de um vão de escada, e os pensamentos saltitam estabelecendo relações extrínsecas ou insignificantes, ocupando constantemente a consciência, quando não atafulha o entorpecimento. No interior como no exterior reina o pânico do vazio. José Gil, O vazio e o pleno, in Portugal, hoje. O medo de existir, Lisboa: Relógio dÁgua, 2004, p. 108
... com a ajuda das leituras da ponte Atlântica, entre outros, de Milton Lahuerta, Marco Aurélio Nogueira, Fernando de La Cuadra, Alessia Ansaloni, Leandro Konder, Guido Liguori, etc.