"(...) um monstro tão dissimulado, tão fingido, tão astuto, tão enganoso e tão conhecidamente traidor!" (...) "E debaixo desta aparência tão modesta, ou desta hipocrisia tão santa (...) o dito polvo é o maior traidor do mar. Se está nos limos, faz-se verde; se está na areia, faz-se branco; se está no lodo, faz-se pardo (...)". (Antº Vieira). É caso para dizer - contra factos não há hipocrisias; a vez do Hugo Fernandez
Usualmente a palavra hipocrisia significa um fingimento de qualidades para ocultar os defeitos. Em termos políticos, este sentido pode manter-se. Porém, quando esta dissimulação permite obter ganhos pessoais e políticos no exercício de funções públicas dever-se-á, com mais propriedade, usar o vocábulo oportunismo. As duas designações aparecem, em todo o caso, ligadas. De facto, só com um elevado grau de hipocrisia se pode ocultar o abuso de poder e a obtenção ilegítima de benefícios característicos do oportunismo e conseguir ainda fugir às sanções que adviriam se a situação fosse revelada. Em termos das doutrinas políticas, o oportunismo revela também uma inefável tendência para o desaforo e desembaraço na manipulação dos princípios e conceitos, configurando aquilo que se costuma designar por mentira. É o caso da palavra libertas exposta nas galés dos condenados ou da tristemente célebre expressão Arbeit macht frei (O trabalho liberta) à entrada do campo de concentração de Auschwitz. Também o actual poder norte-americano promete libertar se necessário à força os povos do mundo. Claro que, nesta situação, não se percebe bem quem serão os oprimidos e os opressores e de que liberdade estaremos realmente a falar. Até porque os E.U.A são o único país que se diz democrático e mantém em seu território um campo de concentração onde são violados os mais elementares direitos humanos, em Guantánamo.
E que dizer do gigantesco embuste que foi a invasão do Iraque, sob o pretexto da neutralização de armas de destruição maciça que o regime iraquiano possuiria e que, afinal, eram inexistentes? Neste caso, a hipocrisia das declarações públicas dos responsáveis americanos todos estamos lembrados da célebre apresentação de provas irrefutáveis de Colin Powell nas Nações Unidas, semanas antes do ataque permitiu levar por diante a invasão de um país soberano, com o exclusivo propósito de controlar os recursos energéticos e as riquezas do Iraque, bem como assegurar a dominação americana numa área estratégica do nosso planeta. Muitos denunciaram, já nessa altura, esse flagrante oportunismo.
É igualmente neste quadro que podem ser entendidas as recentes declarações de Bush em Bruxelas, de que A América apoia uma Europa forte, porque precisamos de um parceiro forte no trabalho árduo de fazer avançar a liberdade no mundo (Público, 22/02/05). É notável o contraste destas intenções com a doutrina seguida, desde o início, pelo governo neoconservador americano, segundo a qual a defesa exclusiva dos interesses americanos está acima de quaisquer outras considerações. Esta doutrina, amplamente exposta em inúmeros documentos oficiais, assenta em três grandes objectivos: a manutenção da doutrina da guerra preventiva e a não exclusão de acções militares unilaterais contra países soberanos, colocando-se assim à margem da legalidade internacional e das competências e resoluções das Nações Unidas; assegurar a todo o custo e contra quem for incluindo, está bem de ver, a própria Europa uma hegemonia tecnológica e militar que garanta o seu estatuto único de hiperpotência mundial; a utilização, para o efeito, de todos os meios que permitam o domínio estratégico dos recursos do planeta e o crescimento do complexo militar-industrial americano, bem como do poder e dos negócios multimilionários dos seus dirigentes, como ficou bem patente no Iraque. É fácil constatar que estamos em pleno reino da hipocrisia e do oportunismo.
Aliás, a manutenção de um estado de guerra permanente e de uma situação de extrema insegurança, pela promoção objectiva das desigualdades e injustiças e, deste modo, das condições necessárias ao alastramento do fenómeno terrorista, permite a Washington a desestruturação da ordem mundial, conforme estava estabelecida até aos nossos dias, de forma a garantir uma hegemonia totalitária dos E.U.A. Se, como dizia o jurista Carl Schmitt, no contexto da Alemanha hitleriana, o soberano é aquele que decide mesmo em situações de excepção, esta pax americana assegura plenamente esse desiderato, a coberto dos conceitos de defesa da liberdade e promoção da democracia. Outro domínio em que o actual poder norte-americano revela a mais rematada hipocrisia é aquele que diz respeito às questões ambientais. Apesar de, na sua visita europeia, George W. Bush ter asseverado que os E.U.A se preocupam com a qualidade do ar que respiramos, recordando que o seu país gasta por ano cerca de 5 mil milhões de euros na investigação científica sobre o clima, desde sempre os responsáveis norte-americanos têm garantido, pelo contrário, que nada vão fazer que possa prejudicar a sua economia predadora e o american way of life, caracterizado pelo excesso e pelo desperdício. É aliás sintomático que estas declarações do presidente norte-americano tenham sido feitas poucos dias depois da entrada em vigor do estabelecido no Protocolo de Quioto, no passado dia 16 de Fevereiro, que obriga os países signatários à adopção de medidas efectivas para reduzir as suas emissões de gases com efeito de estufa e contribuir, assim, para combater o aquecimento global do nosso planeta. Em 2001, já com Bush à frente do governo, os E.U.A, de longe o maior consumidor mundial de recursos e de energia e o maior poluidor atmosférico do planeta, abandonou o protocolo, diminuindo drasticamente a sua eficácia e condenando a humanidade a inevitáveis e dramáticas alterações climáticas. Tudo para assegurar os interesses norte-americanos! E se estas posições fundamentalistas americanas não causam já admiração, o que custa mais a entender é a passividade, quando não anuência, dos governos dos outros países do mundo. Até quando?