Parece um paradoxo... não, não é! Estas derradeiras eleições confirmaram o acesso da democracia portuguesa à sua idade madura, fortalecendo as suas instituições, principalmente a Constituição (como se sabe, a culpada de todas as insuficiências da inteligência política para governar) que, não por acaso, não foi objecto de controvérsia nos programas dos partidos e nem na boca dos candidatos ao cargo/função de primeiro-ministro. Singularidades institucionais, como o processo de judicialização da política, e as primeiras tentativas de simulacro na utilização da urna electrónica, não só se conchavaram entre nós como já ameaçam ganhar o seu espaço. Resta agora fazer passar a democracia política pelo duro teste da democracia social. A nossa experiência democrática, que se iniciou distante do social, apesar de pressionada por ele (embora certos sectores políticos digam o contrário), ampliou-se somente aos poucos, e de modo sempre controlado. Já desde os idos anos da nossa transição democrática, que o controlo do social tem sido a pedra de toque para a preservação da democracia representativa e para as tentativas na recuperação do nosso atraso. Tanto assim é, embora não o pareça, nos últimos 15 anos, o sindicalismo foi perdendo fulgor e mantido com rédeas curtas, sobretudo, à custa de não se querer ou não se saber renovar. Daí se ter, ao lado de uma intrincada economia e de um estágio estagnado de industrialização, os actuais níveis de desigualdade social que assolam o país e que, se a situação não se inverter, já se traduzem em obstáculos à marcha do processo civilizacional europeu.
Os dois últimos governos, como se sabe, tudo fizeram para imobilizar politicamente a sociedade (nunca antes tinha havido tanta manobra de diversão), enquanto deflagrava uma vigorosa ofensiva aos direitos sociais - ao mercado forma-lhe dadas as condições para exercer várias das funções de controlo social antes confiadas à política. Para que isto acontecesse, isto é, para este mau resultado, é bom frisar, não foi indiferente a política dos testas de ferro dos principais grupos económicos (ao longo da nossa história sempre foram uns rentistas) em lugares primordiais nos últimos governos, que se tiveram nas tintas para a valorização das instituições e boa gestão da coisa pública.
Decerto que essa dissociação entre democracia política e democracia social encontrou um bom álibi na luta contra o défice, cujos efeitos mais perversos vitimavam as camadas sociais mais pobres da população. Nesse sentido, as políticas orientadas para a preservação da estabilidade orçamental, embora tenham servido os fins de quem, em nome da modernização (a panaceia serviu apenas para desregulamentar, depois logo se vê...!), desejava emancipar o mercado da influência da política e das pressões que vinham da questão social, expressaram também critérios de desigualdade, ou seja, o social foi absorvido como elemento passivo pela dimensão sistémica. Mas, como se viu, o tão propalado mercado, isto é, a nossa mercearia, entregue à sua própria lógica, longe de nos trazer mais um surto de expansão económica, mais uma vez apertou os nós das redes de constrangimentos sistémicos que atam o país e lhe têm bloqueado as tentativas de retomar políticas de desenvolvimento.
Desatar esses nós foi a opção dos eleitores. A opção foi pelo concerto da política e não pela mediocridade política de uns retardados fedelhos pseudoprofetas perversamente iluminados. Foi pelo cálculo de uma razão democrática e não pelo carisma de uma contaminada liderança providencial. E desatá-los implica dar um fim a essa relação desigual entre as dimensões política, social e económica, em que a segunda ficou sem comunicação com a primeira e reduzida a uma mera expressão passiva da terceira. A equação, portanto, entre elas tem que encontrar outra forma: as escolhas pela democracia social devem traduzir-se na linguagem da democracia política, observadas as regras das amplas alianças, e, a partir daí, por meio das instituições, escoradas na sociedade civil organizada e na força da opinião pública, inclusive a internacional, iniciar um movimento, diríamos, de assédio, crescentemente reforçado com a chegada de novos e credenciados protagonistas, que saibam qual o melhor antídoto para debelar os constrangimentos sistémicos até que se descortine a oportunidade para que se assente uma firme recuperação do desenvolvimento económico. Nessa bandeira, em que o social não se deixa capturar pela intervenção messiânica, e em que a política foge do canto de sereia do decisionismo providencialista, quando os nós que nos atam ainda se fizerem sentir, as artes, os saberes e os recursos da comunicação democrática são o instrumento idóneo com que um país ainda periférico conta para retomar nas suas mãos, por meio de um generoso pacto social, o leme do seu destino, ajudando, assim, a reconfigurar para melhor o mundo em que vivemos.
Mas se a Europa entrou em nós, nós ainda não entrámos na Europa. Às transformações económicas e tecnológicas que a Comunidade Europeia impõe ao nosso país, nós respondemos com uma resistência (sobretudo passiva) que se apoia em velhas estratégias de `inteligência de sobrevivência´, que tem décadas, talvez séculos. Moldadas em estratos inconscientes, elas condicionam os principais reflexos de defesa, constituindo uma verdadeira barreira ao desenvolvimento. (...) O «lá fora» continua longe de nós. José Gil, Da economia dos afectos, in Portugal, hoje. O medo de existir, Lisboa: Relógio dÁgua, 2004, pp. 71 e 72
... com a ajuda das leituras da ponte Atlântica, entre outros, de Milton Lahuerta, Marco Aurélio Nogueira, Fernando de La Cuadra, Alessia Ansaloni, Leandro Konder, Guido Liguori, etc.