Albardas e Alforges... nunca vi nada assim! Minto... já vi!
Sexta-feira, 18 de Março de 2005
A UNIVERSIDADE no sistema de mercantilização das políticas públicas!

Era para abordar o que aí vem em termos da governação, dessa ninguém nos livra (pelo menos até se desvanecer o encanto), ou seja, nem mais nem menos do que a base teórico-epistemológica que enforma o projecto político do ideário da “Terceira Via”, que mais não é, trocado por cêntimos, do que a configuração actual dos governos neo-social-democratas, enquanto movimentos políticos supostamente críticos ao neoliberalismo. Desde já a promessa..., será muito brevemente.


Na “publicitação” de hoje, as palavras serão sobre a UNIVERSIDADE, ou melhor, sobre o governo da universidade. Não é uma opinião virgem esta que vão ler, mas perante a alteração de paradigma que está a acontecer no ensino/formação superior, a questão da universidade é um “terreno” onde a discussão a respeito da sua direcção/gestão e da sua organização/sistema educacional se mostra decisiva, para não correr o risco de “fossilização”. Por uma série de aspectos, dentre os quais ressaltam - a insatisfação com o sistema do número de vagas existentes no ensino superior; as tensões recorrentes entre público e privado; a dificuldade de entendimento dos governos de que só existe ensino de qualidade se existir também investigação; a reiteração de um discurso de desvalorização social, por vezes, banalizador e agressivo; aplicação/concretização do Processo de Bolonha; estatutos de carreira caducos -, estamos a viver, nos últimos tempos, uma sensação de que a universidade pública está mergulhada numa crise interminável e até, esta é forte, autodestrutiva.


Atacada sem tréguas pela lógica da mercantilização, a universidade sente também, numa escala inédita, os efeitos das orientações governamentais dos últimos anos, concentradas no défice, na privatização, na reformulação das práticas gerenciais e administrativas, no constrangimento do Estado e das suas (im)possibilidades de intervenção na vida nacional. Nunca como hoje a universidade pública foi tão amesquinhada pelos governantes, ou seja, por aqueles que deveriam ser os primeiros a defendê-la e a valorizá-la. Converteram-na também num item das despesas públicas - um gasto, não um investimento – só possível num país de medíocres e periférico.


A universidade pública, tolhida pelos factores apontados, encontra-se numa situação periclitante. O que era uma referência, é agora criticada por todos os lados e parece estar a ser abandonada pela sociedade, que, instigada (agressivamente) por uma visão instrumental da formação superior (o que importa e faz doutrina é apenas preparar os jovens para o mercado), tende a olhar sempre com maior desconfiança para a universidade pública, tem tudo de mau - funcionários a mais, qualidade de ensino/formação má, “filosofia” a mais, etc. (provavelmente num aspecto falhou, isto é, pelo que se tem visto ultimamente na gestão da “coisa pública”, não devia ter diplomado tanta incompetência).


A situação é de tal forma absurda que, em decorrência, muitos “iluminados” não tem qualquer pejo em afirmar ter passado a época do ensino superior público, pois este não se mostra capacitado para se adaptar aos novos contextos, abusivamente dispendioso, pouco produtivo e injusto. O melhor seria privatizar ou, no mínimo, fazer a gestão universitária de modo a ser guiada pela lógica do hipermercado, onde tudo se vende e se possível a fazer dumping (veja-se a oferta de pós-graduações).


É preciso desmontar este cambapé. É evidente que temos que parar os desperdícios, nisso não existem dúvidas, mas já não há pachorra para se continuar a pensar e falar da universidade em termos contábeis ou a partir de preconceitos e visões impressionistas. Não faz sentido abordá-la como se fosse uma organização qualquer, parecida com um shopping center ou uma fábrica. Para além de necessário é nosso dever afirmar bem alto, por todos os meios possíveis, que a universidade pública não morreu: que ela, apesar das oscilações, continua viva, certamente que cumprirá uma função axiomática para o desenvolvimento do país, formando profissionais e cidadãos de qualidade. Não é verdade, por exemplo, que os estudantes pioraram ou que os professores de hoje são menos produtivos que os de antes. Afirmar isso é pseudo-elitismo ou falta de visão histórica, algo que desrespeita a realidade e ofende as pessoas envolvidas.


O que se passa, e nem sempre se reconhece, é que a universidade pública se massificou e ainda não conseguiu ajustar-se inteiramente a isso (apesar de algumas reformas, foram séculos de uma herança medieval). E o facto é que, decorridos já estes anos de regime democrático, ainda está imersa numa longa e difícil transição, que transcorre num ambiente complicado, efervescente, desconfiado, pouco organizacional.


Muitos dos problemas universitários derivam daí. São problemas internos, que nascem das mudanças estruturais, da quebra de paradigmas e culturas, da suspensão de pactos de convivência e rotinas administrativas. A Universidade necessita de dar resposta a esses problemas, por que tais problemas complicam terrivelmente a reacção da universidade aos novos contextos.


Mais do que boa administração, a universidade pública necessita hoje de bom governo. Não basta melhorar as habilidades técnico-administrativas no sentido estrito, nem muito menos incorporar novas “tecnologias gerenciais” ou implementar novos desenhos organizacionais. Tudo isso também é útil, mas é seguramente insuficiente. Sem valorização profissional e sem uma política de recursos humanos que se concentre nas pessoas como sujeitos capazes de deliberar e agir, inseridos em espaços repletos de ideias e orientações de sentido - ou seja, que continuem a ser constantemente formados e capacitados -, os avanços certamente que serão inexpressivos. Em vez de chefes (com tudo o que isso significa), precisamos de líderes e dirigentes. Em vez de subordinados, precisamos de dirigidos capazes de dirigir.


Em suma, para ser efectivamente governada como instituição inteligente, voltada para a educação e a pesquisa, a universidade pública precisa de se recolocar plenamente como instituição do saber e do conhecimento. Na base deste movimento, deverá estar a prevalência do mérito académico, mas também a proposição consistente de um pacto democrático de convivência e a assimilação de um padrão superior de gestão. Pela via da reposição do mérito, a universidade se reencontrará com o seu sentido natural e poderá dar respostas como instituição dedicada à produção e difusão de conhecimentos. Da mesma forma, essas resposta, inequivocamente, tem que “dadas” pela via da democracia, construindo um pacto que solidarize os interesses, respeite as individualidades e incentive a participação de todos. E pela via da gestão renovada, aprenderá a dar conta das rotinas sem se deixar rotinizar, inventando-se permanentemente como organização.


“É o medo que nos tolhe e, directa e indirectamente, nos inibe de expandirmos a nossa potência de vida, e mesmo a nossa vontade de viver. De certo modo, pode perguntar-se se a própria não-inscrição, toda essa actividade saltitante do `toca e foge´, esse constante desassossego dos portugueses, não provém do medo. Porque este arranca o indivíduo ao seu solo, desapropria-o do seu território e do seu espaço, deixa-o sobrevoar o real, em pleno nevoeiro. Enquanto dispositivo mutilador do desejo, o medo predispõe à obediência. Amolece os corpos, sorve-lhes a energia, cria um vazio nos espíritos que só tarefas, deveres, obrigações da submissão são supostos preencher. O medo prepara impecavelmente o terreno para a lei repressiva se exercer”. José Gil, “De que é que se tem medo?”, in Portugal, hoje. O medo de existir, Lisboa: Relógio d’Água, 2004, pp. 84


... com a ajuda das leituras da ponte Atlântica, entre outros, de Milton Lahuerta, Marco Aurélio Nogueira, Fernando de La Cuadra, Alessia Ansaloni, Leandro Konder, Guido Liguori, etc.



publicado por albardeiro às 20:22
link do post | comentar | favorito

2 comentários:
De Plancie Herica a 27 de Março de 2005 às 00:25
Bo Páscoa para toda a tripulação dessa embarcação.

Um abraço,
Francisco Nunes


De sebenta de unto a 19 de Março de 2005 às 01:10
Sofre de ingenuidade sociológica quem imagina a educação superior formal como determinante efectivo do sucesso profissional ou elevação de status social. A massificação da nossa universidade tem-se apoiado nessa ilusão da classe média - a escolaridade expandida, usada como ilusão de abertura social, confundiu propositalmente democratização com vulgarização do ensino. Na realidade, o ensino superior universitário deixou de ser superior, quer no plano técnico-científico, quer como privilégio social. Tal mudança tende a anular a principal motivação da procura estudantil, mas o sistema promove permanentemente um estado de alienação que lhe garante sobrevivência por tempo indefinido.


Comentar post

pesquisar
 
Novembro 2024
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2

3
4
5
6
7
8
9

10
11
13
14
15
16

17
18
19
20
22
23

24
25
26
27
28
29
30


posts recentes

Quando acordei, a cultura...

LIDERAR ESTUDOS GLOBAIS: ...

Relações Luso-Nipónicas –...

INTERROGAÇÕES

A transformação digital n...

Carta Aberta ao universo ...

FACES DA DESIGUALDADE

A COMPARAÇÃO

A FUSÃO

AJUSTE DE CONTAS

arquivos

Novembro 2024

Outubro 2024

Setembro 2024

Agosto 2024

Junho 2024

Maio 2024

Março 2024

Fevereiro 2024

Janeiro 2024

Outubro 2023

Julho 2023

Junho 2023

Abril 2023

Março 2023

Fevereiro 2023

Dezembro 2022

Novembro 2022

Outubro 2022

Setembro 2022

Junho 2022

Maio 2022

Abril 2022

Março 2022

Janeiro 2022

Dezembro 2021

Novembro 2021

Outubro 2021

Agosto 2021

Julho 2021

Junho 2021

Abril 2021

Março 2021

Fevereiro 2021

Janeiro 2021

Dezembro 2020

Outubro 2020

Julho 2020

Junho 2020

Abril 2020

Fevereiro 2020

Janeiro 2020

Novembro 2019

Outubro 2019

Setembro 2019

Junho 2019

Maio 2019

Abril 2019

Março 2019

Janeiro 2019

Novembro 2018

Setembro 2018

Julho 2018

Maio 2018

Abril 2018

Fevereiro 2018

Janeiro 2018

Dezembro 2017

Novembro 2017

Outubro 2017

Setembro 2017

Julho 2017

Junho 2017

Maio 2017

Abril 2017

Março 2017

Fevereiro 2017

Janeiro 2017

Dezembro 2016

Novembro 2016

Outubro 2016

Setembro 2016

Agosto 2016

Julho 2016

Junho 2016

Maio 2016

Abril 2016

Março 2016

Janeiro 2016

Novembro 2015

Outubro 2015

Setembro 2015

Agosto 2015

Julho 2015

Maio 2015

Abril 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Abril 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Setembro 2008

Julho 2008

Junho 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Julho 2007

Junho 2007

Maio 2007

Abril 2007

Fevereiro 2007

Janeiro 2007

Novembro 2006

Outubro 2006

Setembro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

Junho 2006

Maio 2006

Abril 2006

Março 2006

Fevereiro 2006

Janeiro 2006

Dezembro 2005

Novembro 2005

Outubro 2005

Setembro 2005

Julho 2005

Junho 2005

Maio 2005

Abril 2005

Março 2005

Fevereiro 2005

Janeiro 2005

Dezembro 2004

Novembro 2004

Outubro 2004

Setembro 2004

Agosto 2004

Julho 2004

Junho 2004

Maio 2004

Abril 2004

Março 2004

blogs SAPO
subscrever feeds
Em destaque no SAPO Blogs
pub