Era para abordar o que aí vem em termos da governação, dessa ninguém nos livra (pelo menos até se desvanecer o encanto), ou seja, nem mais nem menos do que a base teórico-epistemológica que enforma o projecto político do ideário da Terceira Via, que mais não é, trocado por cêntimos, do que a configuração actual dos governos neo-social-democratas, enquanto movimentos políticos supostamente críticos ao neoliberalismo. Desde já a promessa..., será muito brevemente.
Na publicitação de hoje, as palavras serão sobre a UNIVERSIDADE, ou melhor, sobre o governo da universidade. Não é uma opinião virgem esta que vão ler, mas perante a alteração de paradigma que está a acontecer no ensino/formação superior, a questão da universidade é um terreno onde a discussão a respeito da sua direcção/gestão e da sua organização/sistema educacional se mostra decisiva, para não correr o risco de fossilização. Por uma série de aspectos, dentre os quais ressaltam - a insatisfação com o sistema do número de vagas existentes no ensino superior; as tensões recorrentes entre público e privado; a dificuldade de entendimento dos governos de que só existe ensino de qualidade se existir também investigação; a reiteração de um discurso de desvalorização social, por vezes, banalizador e agressivo; aplicação/concretização do Processo de Bolonha; estatutos de carreira caducos -, estamos a viver, nos últimos tempos, uma sensação de que a universidade pública está mergulhada numa crise interminável e até, esta é forte, autodestrutiva.
Atacada sem tréguas pela lógica da mercantilização, a universidade sente também, numa escala inédita, os efeitos das orientações governamentais dos últimos anos, concentradas no défice, na privatização, na reformulação das práticas gerenciais e administrativas, no constrangimento do Estado e das suas (im)possibilidades de intervenção na vida nacional. Nunca como hoje a universidade pública foi tão amesquinhada pelos governantes, ou seja, por aqueles que deveriam ser os primeiros a defendê-la e a valorizá-la. Converteram-na também num item das despesas públicas - um gasto, não um investimento só possível num país de medíocres e periférico.
A universidade pública, tolhida pelos factores apontados, encontra-se numa situação periclitante. O que era uma referência, é agora criticada por todos os lados e parece estar a ser abandonada pela sociedade, que, instigada (agressivamente) por uma visão instrumental da formação superior (o que importa e faz doutrina é apenas preparar os jovens para o mercado), tende a olhar sempre com maior desconfiança para a universidade pública, tem tudo de mau - funcionários a mais, qualidade de ensino/formação má, filosofia a mais, etc. (provavelmente num aspecto falhou, isto é, pelo que se tem visto ultimamente na gestão da coisa pública, não devia ter diplomado tanta incompetência).
A situação é de tal forma absurda que, em decorrência, muitos iluminados não tem qualquer pejo em afirmar ter passado a época do ensino superior público, pois este não se mostra capacitado para se adaptar aos novos contextos, abusivamente dispendioso, pouco produtivo e injusto. O melhor seria privatizar ou, no mínimo, fazer a gestão universitária de modo a ser guiada pela lógica do hipermercado, onde tudo se vende e se possível a fazer dumping (veja-se a oferta de pós-graduações).
É preciso desmontar este cambapé. É evidente que temos que parar os desperdícios, nisso não existem dúvidas, mas já não há pachorra para se continuar a pensar e falar da universidade em termos contábeis ou a partir de preconceitos e visões impressionistas. Não faz sentido abordá-la como se fosse uma organização qualquer, parecida com um shopping center ou uma fábrica. Para além de necessário é nosso dever afirmar bem alto, por todos os meios possíveis, que a universidade pública não morreu: que ela, apesar das oscilações, continua viva, certamente que cumprirá uma função axiomática para o desenvolvimento do país, formando profissionais e cidadãos de qualidade. Não é verdade, por exemplo, que os estudantes pioraram ou que os professores de hoje são menos produtivos que os de antes. Afirmar isso é pseudo-elitismo ou falta de visão histórica, algo que desrespeita a realidade e ofende as pessoas envolvidas.
O que se passa, e nem sempre se reconhece, é que a universidade pública se massificou e ainda não conseguiu ajustar-se inteiramente a isso (apesar de algumas reformas, foram séculos de uma herança medieval). E o facto é que, decorridos já estes anos de regime democrático, ainda está imersa numa longa e difícil transição, que transcorre num ambiente complicado, efervescente, desconfiado, pouco organizacional.
Muitos dos problemas universitários derivam daí. São problemas internos, que nascem das mudanças estruturais, da quebra de paradigmas e culturas, da suspensão de pactos de convivência e rotinas administrativas. A Universidade necessita de dar resposta a esses problemas, por que tais problemas complicam terrivelmente a reacção da universidade aos novos contextos.
Mais do que boa administração, a universidade pública necessita hoje de bom governo. Não basta melhorar as habilidades técnico-administrativas no sentido estrito, nem muito menos incorporar novas tecnologias gerenciais ou implementar novos desenhos organizacionais. Tudo isso também é útil, mas é seguramente insuficiente. Sem valorização profissional e sem uma política de recursos humanos que se concentre nas pessoas como sujeitos capazes de deliberar e agir, inseridos em espaços repletos de ideias e orientações de sentido - ou seja, que continuem a ser constantemente formados e capacitados -, os avanços certamente que serão inexpressivos. Em vez de chefes (com tudo o que isso significa), precisamos de líderes e dirigentes. Em vez de subordinados, precisamos de dirigidos capazes de dirigir.
Em suma, para ser efectivamente governada como instituição inteligente, voltada para a educação e a pesquisa, a universidade pública precisa de se recolocar plenamente como instituição do saber e do conhecimento. Na base deste movimento, deverá estar a prevalência do mérito académico, mas também a proposição consistente de um pacto democrático de convivência e a assimilação de um padrão superior de gestão. Pela via da reposição do mérito, a universidade se reencontrará com o seu sentido natural e poderá dar respostas como instituição dedicada à produção e difusão de conhecimentos. Da mesma forma, essas resposta, inequivocamente, tem que dadas pela via da democracia, construindo um pacto que solidarize os interesses, respeite as individualidades e incentive a participação de todos. E pela via da gestão renovada, aprenderá a dar conta das rotinas sem se deixar rotinizar, inventando-se permanentemente como organização.
É o medo que nos tolhe e, directa e indirectamente, nos inibe de expandirmos a nossa potência de vida, e mesmo a nossa vontade de viver. De certo modo, pode perguntar-se se a própria não-inscrição, toda essa actividade saltitante do `toca e foge´, esse constante desassossego dos portugueses, não provém do medo. Porque este arranca o indivíduo ao seu solo, desapropria-o do seu território e do seu espaço, deixa-o sobrevoar o real, em pleno nevoeiro. Enquanto dispositivo mutilador do desejo, o medo predispõe à obediência. Amolece os corpos, sorve-lhes a energia, cria um vazio nos espíritos que só tarefas, deveres, obrigações da submissão são supostos preencher. O medo prepara impecavelmente o terreno para a lei repressiva se exercer. José Gil, De que é que se tem medo?, in Portugal, hoje. O medo de existir, Lisboa: Relógio dÁgua, 2004, pp. 84
... com a ajuda das leituras da ponte Atlântica, entre outros, de Milton Lahuerta, Marco Aurélio Nogueira, Fernando de La Cuadra, Alessia Ansaloni, Leandro Konder, Guido Liguori, etc.