(CONTINUAÇÃO...)
Sociedade civil e Estado: que relação?
Voltando à questão da via Guiddeana e correndo o risco de simplificar diria como Marcos de Oliveira, que do ponto de vista giddeniano, a recuperação da legitimidade do poder estatal depende da sua capacidade de descentralização, transparência e abertura (talvez com isto esteja a responder a algumas dúvidas levantadas nos comentários anteriores!). Sim, é verdade...! Se possível, aprender com a prática empresarial (mas duvido do empresarialismo paternalista português), instituindo os seguintes mecanismos: controlo de metas, auditorias, estruturas flexíveis e mais participação (democracia directa). O Estado, porém, para ser melhor que as empresas, deve procurar a neutralidade: não ter inimigos, nem gerar a conflitualidade. Ou seja, deve ser ágil e cosmopolita na sua forma e essência, articulando tanto o global e o local, tanto quanto os interesses divergentes que caracterizam internamente uma sociedade. Como? Pela promoção da sociedade civil, através de uma teoria política que aumente a solidariedade social e diminua as diferenças económicas. A parceria entre governo e sociedade civil é a base, portanto, desta renovação da social-democracia de carácter comunitarista (serão os países nórdicos assim?). Os agentes dessa renovação estão no chamado terceiro sector, as associações voluntárias, que se caracterizam pela flexibilidade das suas acções e pela capacidade de autogoverno fontes, portanto, de um novo sentimento de pertença e de bases dos valores pós-materialistas (creio que a Suécia e ultimamente a Finlândia são bons modelos).
É com base nesses pressupostos que Giddens, sem fazer uma crítica das críticas, não deixa de colocar a 3ª Via como a única forma de realizar as promessas da social-democracia: justiça e solidariedade social. Isto porque, argumenta ele, ela é a única capaz de lidar, de maneira sofisticada, com as questões da desigualdade e do corporativismo. Afirma ainda que a sua principal virtude é a de não ser um programa de um único partido ou país: é um programa completo de modernização política. E moderno aqui significa admitir a eficiência do mercado na criação de riqueza e o facto do capital privado ser essencial para o investimento social isso sem questionar a origem deste capital -, o que quanto a nós é altamente preocupante. Ou seja, moderno aqui, portanto, significa admitir que o Estado pode criar desigualdades isso sem questionar as estruturas de poder do capital sobre a acção estatal que produzem estas desigualdades.
Desta forma, Giddens substitui a mão invisível de Adam Smith pelo conceito de currículo oculto, que seria a capacidade de um mercado bem regulado produzir paz social. Apesar de imposto pela força, o capitalismo torna-se um sistema estável de relações sociais pela capacidade de fazer com que os consumidores possam escolher livremente os mais variados produtos. O mercado, acredita o autor, favorece atitudes responsáveis porque estimula o cálculo e o raciocínio e não decisões burocráticas. Mas para não engendrar uma mercantilização, é preciso ajustes e controlo externo, que fornecerão os princípios éticos garantidos pela lei. Para frear os efeitos perversos da energia empresarial, que tende a criar monopólios, invoca-se o chamado investimento em capital humano, que deve ser alimentado pela acção conjunta do Estado, da família e das comunidades. O ideário da Terceira Via comporta, portanto, um viés keynesiano ainda que restrito à intervenção participada.
E o principal instrumento desta intervenção participada, como já foi reconhecido, são os grupos que compõe o Terceiro Sector, a parte mais dinâmica da sociedade civil. Juntamente com o governo e a economia, este (3º Sector) torna-se um importante centro de poder decisório, um relevante actor para a constituição de um novo contrato social, em que os direitos são encadeados com responsabilidades sociais. Através destas agências é que o Estado pode promover o investimento em capital humano e, assim, se tornar um Estado de investimento social, no qual predomina uma nova economia mista. A sua função é a de promover a maximização da igualdade de oportunidades, que vai substituir os antigos mecanismos de welfare, que, como sabemos, criou novas formas de exclusão. A ressurreição das instituições públicas depende, ainda, de uma visão pluralista da estrutura social, tendente a substituir a noção monista que se instalou (embora não o parecendo) no estatismo português, ineficiente e hierarquizado onde campeiam as oligarquias broncas. O que se quer é um Estado Democrático Forte, não um Estado grande, monopolista e sobredimensionado.
Todavia, não tenhamos ilusões, no (nosso) caso português onde a amálgama das elites económicas arcaicas e patrimonialistas que sempre dominaram na esfera estatal, politicamente consubstanciadas, ora no centro-esquerda ora no centro-direita, têm sido incapazes de conduzir o Estado rumo àquilo que deve ser um Estado no século XXI. Isto é, temos um longo percurso a fazer na construção desse (outro) Estado. Porque o Estado pela qual pugnam os paladinos dessas oligarquias, nada mais é do que um travestido Estado Social-Liberal, revestido do enganoso sentido de que é "social porque continuará a proteger os direitos sociais e a promover o desenvolvimento económico" e "liberal, porque o fará usando mais os controlos de mercado e menos os controlos administrativos, porque realizará os seus serviços sociais e científicos principalmente através de organizações públicas não-estatais competitivas, porque tornará os mercados de trabalho mais flexíveis, porque promoverá a capacitação dos seus recursos humanos e das suas empresas para a inovação e para a competição internacional" (Ver - SADER, Emir. "Direitos e cidadania na era da 'globalização'". In BÓGUS, L. e PAULINO, A. Y. (orgs.). Políticas de Emprego, Políticas de População e Direitos Sociais, São Paulo, Educ, 2003). Inequivocamente, os fundamentos dessa matriz de Estado, indicam claramente a mercantilização dos direitos sociais e não a sua defesa; indicam uma retracção do Estado de direito; indicam uma instrumentalização dos direitos pela racionalidade económica; indicam algum retrocesso na construção democrática e no exercício da cidadania.
CONTINUA...