Interrompemos o nosso percurso da TERCEIRA VIA, um percurso mais terreno, e navegaremos metaforicamente, no texto que se segue, da autoria do HUGO FERNANDEZ (um albardeiro menos assíduo) por águas demasiado salgadas, por que a ausência das outras... são também parte da seca que nos flagela. Oceanos, mares salgados, navegadores, homens do leme... se na sociedade portuguesa a metáfora das águas está associada à formação de uma identidade mestra, é no seu leito que se dá a derrocada. Que peso enorme tiveram/têm as palavras proféticas do velho do Restelo. Paradoxalmente, outros NÓS QUE NOS ATAM! A História mostrou-nos que o brilho das águas das navegações se adensaram na medida em que as utopias daquele presente cederam espaço ao esfacelamento da identidade nacional a partir de fins do século XVI. O advento do sebastianismo foi um dos últimos bastiões de uma glória que aos poucos se iria indefinir e desconcertar, mas que manteve a promessa do retorno da última nau a esperança do renascimento da glória de um império encantado, intocado pelo tempo (ver: FERREIRA, Margarida Alves. In: MEIKY, José Carlos e ARAGÃO, Maria Lúcia (org): América:Ficção e utopias, São Paulo, EDUSP/ Expressão Cultural, 1994, pp. 27-43). A mitologia das águas expressou, hegemonicamente, o turvamento bachelardiano do mar português expresso pela dicotomia claro e escuro, passado e presente e a busca do belo ancestral naufragado em águas profundas e distópicas. Há sempre este traço identitário nacional, há sempre qualquer coisa sob o signo da predestinação remanescente... porquê? Porquê...? Chega de blasfémia...! O Hugo falará com mais propriedade sobre esta coisa que presentemente deu à costa...
ATLÂNTICO
Para além de nome de oceano, Atlântico passou agora também a ser nome de revista. Esta novidade editorial portuguesa, cuja responsável é Helena Matos, apresenta-se neste primeiro número de Abril de 2005 com posições firmes e propósitos determinados. Assume-se como projecto inconfundível, de forte identidade e carácter. E, de facto, basta atentarmos no elenco dos seus colaboradores, para não haver dúvidas quanto à sua identidade. De Vasco Rato a Manuel de Lucena, de Joaquim Aguiar a Luciano Amaral ou de Rui Ramos a Fátima Bonifácio, encontramos aqui uma parte significativa da intelligentsia portuguesa conservadora. É, portanto, uma revista que se situa claramente à direita.
Se sobre isso houvesse alguma dúvida, bastava cotejar a prévia Declaração Editorial em jeito de acróstico, onde se diz que o  significa Aliança Atlântica, acrescentando-se que A aliança entre europeus e norte-americanos foi e é o garante da nossa liberdade e segurança. e de que o O diz respeito a Ocidente uma vez que a civilização ocidental é aquela que maior prosperidade, direitos e liberdades conseguiu assegurar a um maior número de cidadãos. Porque o Ocidente é o nosso mundo. Dificilmente conseguiríamos um bilhete de identidade mais claro. Não só o seu alinhamento com a filosofia política da actual administração Bush nos parece evidente, como implicitamente são repisadas as teclas do choque das civilizações e a cruzada contra o Mal dos neoconservadores americanos.
Custa-nos mais a entender porque também se diz que a Atlântico é única. De facto, no panorama nacional, não faz mais que potenciar opções ideológicas disseminadas pela generalidade dos órgãos de comunicação social, desde a televisão à imprensa. Talvez a sua única virtude seja a da sistematização desse particular entendimento do mundo e da assunção, como linha editorial própria, desse seu carácter marcadamente doutrinário. O que, apesar de tudo, não é pouco e é perfeitamente legítimo. Segue, aliás, exemplos internacionais no mesmo sentido. Lembremo-nos do papel desempenhado pela seminal revista norte-americana The Public Interest, fundada em 1965 por Irving Kristol, que tem sido, ao longo dos anos, uma autêntica Bíblia do pensamento neoconservador e que conta, como um dos seus mais proeminentes colaboradores, com o inefável Francis Fukuyama. Não será certamente por coincidência que, na rubrica Gostos da revista Atlântico, seja o último livro deste autêntico corifeu intelectual do neoconservadorismo, publicado no ano passado com o título State Building: Governance and World Order in the 21st Century, um dos livros recenseados.
O que causa verdadeira perplexidade nos propósitos da revista é o significado atribuído ao I da palavra Atlântico: Inconformismo, rematando-se, logo de seguida, Contra a cultura dominante e o politicamente correcto. O seu principal objectivo? Fazer uma revista que rompa com o unanimismo reinante. Mas, afinal, de que estamos a falar? Porque se há unanimismo no mundo de hoje, esse resulta precisamente da disseminação generalizada do pensamento neoconservador americano, da lógica predadora da globalização neo-liberal e da dominação planetária dos E.U.A. Assim se pensa nos corredores do poder da quase totalidade dos países. Por essa mesma bitola afinam governos, organizações e partidos políticos em todo o mundo. É dessa forma que os opinion makers dos mais influentes meios de comunicação social, formatam a opinião pública mundial.
Parece-nos que a linha de pensamento que a revista Atlântico segue é, pelo contrário, o da doxa instalada. O do conformismo perante a ordem das coisas. O da aceitação dócil do domínio imperial americano da deriva securitária, da injustiça e da desigualdade com todas as consequências que daí advém para a vida no nosso planeta. Qual é, então, a novidade? Que inconformismo é este? O do poder e da cultura dominantes? O do pensamento único made in Washington? Sabemos da particular capacidade que o sistema capitalista tem de incorporar no seu seio as forças da sua própria subversão e, dessa forma, neutralizá-las. Mas querer passar uma postura politicamente conservadora em qualquer caso dominante por uma atitude contestatária e subversiva, parece-nos algo de verdadeiramente incrível. Mais do que uma mistificação é uma fraude.
Atribui-se ao presidente norte-americano Abraham Lincoln o conhecido aforismo segundo o qual se pode enganar toda a gente algum tempo; pode-se mesmo enganar algumas pessoas todo o tempo; mas não se pode enganar toda a gente todo o tempo. É que, de facto, as coisas são o que são.