Como os limites do mundo são os limites da linguagem, na formulação perspicaz de Wittgenstein, e como não temos por norma adiar a crítica e o somos sensíveis ao debate das ideias, aqui vai um texto do Hugo Fernandez (o outro Albardeiro) sobre o que podemos apelidar de inconformismos e coerências.
O dirigente marxista italiano António Gramsci estabeleceu na década de trinta do século passado uma distinção fundamental entre um tipo tradicional de intelectual o literato, o filósofo ou o artista e um outro tipo de intelectual que, emergindo das exigências da produção e do desenvolvimento técnico, fornece os instrumentos ideológicos necessários à propagação de uma determinada visão do mundo, dotando de homogeneidade e tornando inteligíveis os vários aspectos da realidade: o intelectual orgânico. Nesta asserção, intelectual não é simplesmente aquele que pensa o que apenas põe em evidência uma característica comum a qualquer ser humano mas aquele que tem a responsabilidade social de produzir conhecimento e de o comunicar aos outros.
A função especializada destes quadros intelectuais adquire uma importância reforçada no capitalismo, quando o domínio da burguesia transporta consigo aspirações sociais alargadas e valores que se pretendem universais. Garantir a hegemonia dos grupos sociais dominantes, assegurando um consenso o mais amplo possível à sua autoridade junto da população, é a sua principal tarefa. Nesta démarche, cabe aos partidos políticos um papel essencial. Juntamente com o Estado, são estes que asseguram a missão de preparar os elementos politicamente qualificados para, no plano cívico e político, garantirem uma função dirigente, organizadora, educativa isto é, intelectual com vista a assegurar a evolução orgânica da sociedade e a reprodução do próprio sistema.
Vem isto a propósito do artigo de opinião de José Pacheco Pereira no Público do passado dia 28 de Abril. Intitulado Portugal a voo de pássaro, o autor descreve o que apelida de retrato de Portugal bem triste e sinistro. Esse é o Portugal do desordenamento do território, da falta de planeamento, da construção anárquica, do desperdício e da ruína, da poluição e das lixeiras, da sinalização rodoviária excessiva, inexistente ou incompreensível, da proliferação de antenas de telemóvel e de parques eólicos plantados nos sítios mais inacreditáveis, da pobreza e da degradação social enfim, do caos. E Pacheco Pereira conclui: A única verdadeira fábrica que está em acção é a da produção de fealdade, a do Portugal feio. Não podia estar mais de acordo. E é precisamente aí que reside o problema.
Vindas de quem vêm, estas palavras soam estranhas. Não porque não reconheça ao seu autor engenho e arte ou competência intelectual para o efeito. Mas porque quem assim escreve não tem legitimidade para o fazer. Pacheco Pereira é uma proeminente personalidade do PSD e, consequentemente, para além do assumido engajamento político, alguém muito próximo dos círculos de poder no nosso país. A sua denúncia é, assim, inócua. Pior, soa a falso. Não foi este o partido que mais anos esteve no governo do Portugal democrático, a maior parte do tempo com maioria absoluta? Não é o PSD um partido que sempre teve grande influencia no poder autárquico e que hoje é mesmo a principal força política a nível do poder local? Não é este o partido que sociologicamente concentra em militância ou em votos a maior parte dos empresários, empreiteiros, financeiros e capitalistas deste país? Não é este o partido que, trazendo impressa na sua matriz ideológica a defesa do mercado e da livre iniciativa, se converteu de forma mais evidente à lógica neo-liberal reinante? Tomou este partido, com responsabilidades iniludíveis na governação do nosso país, medidas para alterar a situação agora denunciada? Preocupou-se, sequer, alguma vez com estes problemas?
A honestidade intelectual impunha respostas adequadas a todas estas questões. O próprio posicionamento cívico e político do autor, levada esta denúncia às últimas consequências, tinha que sofrer uma acentuada alteração. Tal, obviamente, não acontece. O seu comprometimento político e o seu estatuto de intelectual orgânico condicionam inevitavelmente a sua consciência. É a sua sina. Acresce que estes aspectos de incidência nacional reflectem questões estruturais que têm a ver com o sistema capitalista dominante. De facto, toda a racionalidade do capitalismo, de forma directa e assumida, ou de forma mitigada e assistencial, sempre foi reduzida à racionalidade económica. E esta é definida em termos simples e quantitativos: minimização dos custos e maximização dos lucros. Independentemente das actividades consideradas e mesmo dos seus destinatários sempre considerados como produtos e valorizados em termos exclusivamente monetários , o critério económico ocupa um lugar central no ordenamento das sociedades e erige-se como valor supremo da vida social (como se a vida se pudesse resumir à mera lógica contabilística do deve e do haver!).
Mas é precisamente isso que pretende a teologia do mercado. Rejeitando qualquer outro tipo de consideração social (moral, ética, ambiental, cultural ou estética) que possa constituir um entrave à mercantilização da existência, a ordem capitalista impõe aquilo que Dany-Robert Dufour caracteriza por dessimbolização, isto é, o aniquilamento de todos os valores culturais e de todo o legado civilizacional, desenvolvido pela humanidade ao longo dos séculos, que possam representar constrangimentos à lógica totalitária da produção desenfreada e da circulação universal das mercadorias. Vivemos, pois, num período de dissolução das relações sociais solidárias e desregulação da vida comunitária que alguns não hesitam em apelidar de anarco-capitalismo.
É este o implacável diagnóstico que enquadra e explica a situação que Pacheco Pereira agora denuncia. Ora não podemos só olhar para as vantagens e esconder os inconvenientes. Faz tudo parte do mesmo pacote. Como diz o ditado popular, não se pode querer sol na eira e chuva no nabal. Não deixa, por isso, de revelar extrema ingenuidade ou o mais rematado cinismo a afirmação segundo a qual o progresso económico era possível sem esta destruição da qualidade de vida, da vista, da paisagem, do equilíbrio natural e mesmo do equilíbrio artificial. É que, de facto, não era. Nunca tal ocorreu na história do capitalismo e não é de prever que alguma vez isso venha a acontecer. Não faz parte da sua lógica de funcionamento. E mesmo quando os países ricos conseguem minorar estes inconvenientes, isso é feito à custo do acréscimo de problemas no resto do mundo. E não me parece que Portugal faça parte desse grupo privilegiado de países.
A grande contradição do sistema capitalista é que a sua voracidade predadora acabará por exaurir os recursos de que necessita para a sua própria reprodução. A lógica consumista acabará por se consumir levando, se não forem tomadas medidas e se não se fizerem opções políticas claras e comprometimentos cívicos corajosos, à inviabilidade da nossa existência. Como diz o próprio Pacheco Pereira, É uma mínima percepção, inclusive económica, de que isto é um péssimo negócio para todos, mesmo que seja vantajoso a curto prazo para alguns." Não podíamos estar mais de acordo.