Um texto do HUGO FERNANDEZ sobre a realidade actual europeia, um discurso da razão sobre a razão, desbanalizando o que muitos queriam que fosse banal. Um discurso que nos interroga continuamente de que podemos ser versões melhores de nós mesmos como europeus; que podemos ser mais do que somos: mais plurais, audaciosos, diferentes e livres, enfim, capazes de usar dessa liberdade para a construção de sociedades democráticas onde sejamos mais diferentes, mais livres, mais plurais e mais resolutos.
1ª Parte
O resultado era esperado. Depois da dupla rejeição franco-holandesa no referendo ao Tratado Constitucional (respectivamente 55% e 63% de votos), poucas outras alternativas restavam aos líderes europeus reunidos na cimeira de Bruxelas. O processo de ratificação do Tratado, que devia estar concluído até finais de 2006, vai ter o seu prazo alargado. Nas palavras do actual presidente rotativo do Conselho, o luxemburguês Jean-Claude Juncker, até meados de 2007. De qualquer forma, como fez questão de sublinhar, não se trata de uma suspensão e não haverá, consequentemente, lugar à renegociação do documento. Veremos
Tanto a França como a Holanda são países fundadores da Comunidade Europeia. Acresce que, desde 1999, nenhum outro país europeu contribuiu mais para o orçamento comunitário do que a Holanda. Em 2002 a contribuição holandesa era de 0,65% do PNB, quase o dobro da Alemanha, com 0,38%. Além do mais, a possibilidade muito plausível de se assistir a uma sucessão de rejeições nos países que ainda não realizaram os seus referendos, ameaça alastrar como uma mancha de óleo. Recorde-se, aliás, que apenas um dos três países em que foi dada aos cidadãos a oportunidade de se pronunciarem sobre a Constituição europeia, votou favoravelmente a Espanha.
Falou-se de congelar, suspender, parar para reflectir, vamos escutar as pessoas, temos um plano D de democracia, de debate e de diálogo esta última posição do inefável Durão Barroso na certeza, porém, de que esta foi uma das mais difíceis cimeiras europeias dos últimos anos e de que está instalado um impasse e uma crise profunda na União. Como concluiu eufemisticamente o presidente Juncker, temos de juntar tempo ao tempo. Talvez seja necessário muito mais do que a lógica do aguardar à espera que passe.
Perante esta situação, os eurocratas multiplicaram-se em declarações e tomadas de posição. Disse-se de tudo. Que as populações não estavam esclarecidas e que votaram tendo em conta os seus interesses imediatos. Ora, pelo contrário, verificou-se que a falta de verdadeiro debate com a preocupação de envolver e ouvir as populações se deu precisamente nos países em que a ratificação do Tratado foi feita por via parlamentar. Nos países onde ocorreram referendos, o debate foi alargado, vivo, participado e deu no que deu. Desvalorizou-se o significado do descontentamento verificado, utilizando uma conhecida técnica argumentativa que consiste em rebaixar o próprio adversário, diminuindo, assim, a pertinência das suas ideias. De entre vários exemplos, podemos destacar o de António Vitorino que, em entrevista ao Diário de Notícias (29/5/05) afirmou A tendência para votar por medos e fantasmas torna difícil um debate racional, baseado no que está efectivamente escrito no tratado da união. Não foi, como vimos, o caso. Já para não falar da posição expressa pelo putativo Pedro Norton, num dos seus habituais artigos de opinião na revista Visão (16/6/05), em que atribui às elites um papel insubstituível (quais elites? que papel?), alegando virtudes da ponderação, da deliberação, da construção de consensos de que estas seriam apanágio. Invocou, a propósito, uma frase no mínimo polémica do politólogo italiano Giovanni Sartori, segundo o qual um aumento do directismo na democracia e um consequente crescimento da participação popular poderá resultar na distribuição de cartas de condução sem que nos perguntemos se os encartados sabem conduzir. Todos sabemos ao que levou, na história recente do nosso país, a conversa da falta de preparação dos portugueses para a democracia.
CONTINUA