(Para ler devagar )
Dando continuidade às leituras da PONTE ATLÂNTICA, aliás, ultimamente um pouco relegadas para a penumbra, os acontecimentos (LIVE8, a reunião dos G8 e sobretudo a cobardia dos atentados de Londres) fizeram com que retomássemos a publicitação dessas reflexões sobre o devir societário do Mundo contemporâneo. Modestamente, afirmava muito recentemente, Aurélio Nogueira (emérito autor de Um Estado para a sociedade civil. Temas éticos e políticos da gestão democrática, São Paulo, Editora Cortez, 2004): «Visto no seu enquadramento histórico amplo, o século XX foi um tempo de paradoxos. Desdobrou-se como uma época de progressos e avanços insofismáveis, nos mais diversos e surpreendentes planos da vida, mas não teve força para qualificar de modo radical o salto que se deu para a frente. Foi um século que acelerou e aprofundou a aproximação entre homens e mulheres dos mais diversos recantos: o mundo ficou muito mais mundo. Processando-se, porém, sob a égide do grande capital e da globalização neoliberal, em vez de promover a unificação do género humano, a aproximação traduziu-se apenas na mundialização. Em vez de integração, tivemos muitas separações; em vez de equilíbrio e cooperação, muita instabilidade e competição. A comunicação alastrou-se, graças à difusão das novas tecnologias da informação e da Internet, mas não se conseguiu estabelecer uma era de diálogo consistente, culturalmente denso e capaz de disseminar inteligência. Nunca houve tanto empenho pela paz e tantas guerras, abertas ou dissimuladas. Nunca o quotidiano esteve tão dilacerado pela violência e pela insegurança.»
Que século imaginaria legar, para seu sucessor, o espectáculo aterrador de Setembro de 2001, de Março de 2004, de Julho de 2005, de quantos mais (!?) Nunca o terrorismo gozou de tanto espaço, facilidade e petulância, indiferente a sonhos, utopias e movimentos em favor da paz, da integração, do diálogo entre os povos e da interjeição de um sentido democrático e social na lógica perversa da globalização. Nunca um Império e um sistema foi tão poderoso, tão dono do mundo, tão omnipotente, e ao mesmo tempo tão frágil, tão inseguro, tão devassável. Nunca é demais recordá-lo, a sua obsessiva insistência em financiar, armar e treinar o terror contra os seus adversários, em sustentar regimes opressivos e apoiar tiranos ensandecidos pelos quatro cantos do mundo - no Vietname, no Chile, na Nicarágua, em El Salvador, no Médio Oriente, no Afeganistão -, acabou por se voltar contra ele: ao incentivarem o terrorismo localizado, os Estados Unidos criaram as condições para o crescimento de um monstro fora de qualquer controlo, que os converteria em alvo e ameaçaria o conjunto da vida civilizada. A sua determinação em ser o herói universal e o seu olímpico laxismo para com a miséria de tantos povos fizeram com que se transformasse no vilão universal. Nunca um Império foi tão amado e tão odiado.
Ainda que tenha contribuído para que se estabelecesse um mais elevado padrão de igualdade social, o século XX não soube neutralizar ou eliminar a pobreza e a miséria, que chegaram ao final do período exibindo índices alarmantes. Sim, a pobreza e a miséria de que falava Mário Soares e que apressados neocons tentaram ridicularizar. De que se alimenta a ideologia que gera o terror? A desigualdade voltou a crescer, quando tudo levava a crer que os seus dias estavam contados. Expandiu-se em termos quantitativos - com o aumento do número de miseráveis e o retorno à pobreza de segmentos que antes se haviam dela afastado - e em termos qualitativos, com o aparecimento de desigualdades novas (como a que separa excluídos e incluídos, ou a que distingue comunitários e extra comunitários na Europa). Sobre uma base jamais antevista de riqueza material, científica e cultural, a distância entre ricos e pobres atingiu níveis infames. Progressivamente, impelido pela exacerbação das suas contradições, o século foi dando origem a um quadro em que meia dúzia de arquimilionários acumula tanta riqueza quanto a metade dos países do mundo, em que boa parte da população mundial sobrevive com menos de 2 dólares por dia, em que a subnutrição e as más condições de vida dizimam milhares de jovens e adultos, em que crianças vegetam nas grandes cidades no meio de símbolos ostensivos de poderio económico, conforto e bem-estar.
Apesar de ter declinado de forma expressiva ao longo dos anos 1900, o analfabetismo continua a ser um problema de grandes proporções: cerca de 20% da população mundial - 875 milhões de pessoas - entraram neste nosso século (actual) sem dominar as bases da linguagem escrita. Pior: o analfabetismo feminizou-se - do total de analfabetos, 66% são mulheres - e concentrou-se geograficamente (17 dos 25 países com grandes índices de analfabetos encontram-se na África subsaariana e no Sudeste Asiático). É um poderoso indicador da desigualdade e da exclusão, sobretudo quando avaliado juntamente com a chamada ignorância digital, que afasta milhões de pessoas do uso do computador e de diversas oportunidades de emprego, comunicação e intercâmbio.
O século também não possibilitou a convivência sustentável e civilizada com a natureza: ainda que tenha propiciado a completa sujeição da natureza aos caprichos e necessidades do homem - tanto da natureza como meio físico, quanto da natureza como meio humano, como corpo e mente -, não despoletou o necessário andamento a nenhum movimento honesto de reprodução ou reposição da natureza, que se decompõe diante da volúpia produtivista e da posse predatória. Além do mais, o domínio da natureza confundiu-se com controlos totais, fantasias omnipotentes e racionalizações extremas, que seguramente abalaram o modo como a humanidade vivia a vida e a explicava a si mesma. O século enfatizou categoricamente o valor do trabalho a sua capacidade de transformar a natureza e promover o ser humano -, mas chegou a um ponto que esse trabalho, é assim a modos que apequenado, submetido a pressões demasiadamente técnicas, organizacionais e políticas.
Ao abrir-se o século XXI, as massas de desempregados convivem com guetos especializados de profissionais bem remunerados (se confirmarem as investigações da polícia inglesa quanto aos autores dos atentados de Londres, estamos perante a confirmação daquilo que até agora eram só suspeitas, quanto à origem dos novos recrutamentos, por parte do terrorismo islâmico). Por força das várias indecisões políticas e das incapacidades na gestão dos sistemas de Segurança e Previdência Social, a jornada de trabalho, quando tudo apontava para o seu declinar, apresenta-se como a maior das irracionalidades. Por outro lado, os escritórios domésticos expandiram-se a ponto de criar a imagem (ilusão) de um trabalho sob controlo estrito do trabalhador, e nas organizações adoptou-se um discurso gerencial todo patenteado no respeito à individualidade do trabalhador, na flexibilidade e no abandono dos controlos formais. Discurso que não se repercute na realidade. De um modo geral, as pessoas trabalham mais e em condições sempre mais adversas ou incertas. O emprego desestruturou-se e despersonalizou-se na mesma intensidade em que o part-time job se converteu em padrão do modo futuro de trabalhar. Tudo contrasta a facilidade dos discursos que proclamam o início de uma era de ócio criativo e direito à preguiça.
O século XX foi um século de massas. A forte e acelerada socialização da política projectou os trabalhadores como protagonistas activos do Estado e do governo. Grandes partidos e sindicatos afirmaram-se num terreno que, até ao século XIX, era acessível apenas a poucas elites - pessoas influentes, alguns condottieri remanescentes, protegidos do Príncipe, funcionários qualificados, políticos de velha estirpe. A emergência das massas reformulou toda a esfera política: aproximou-a da democracia substantiva, do sufrágio universal, da representação alargada, do controlo social, do autogoverno. As massas aceleraram e aprofundaram o processo de ampliação do Estado, colando uma sociedade civil sempre mais plural e activa a uma sociedade política sempre mais vinculada socialmente. Onde antes imperavam os homens de prol, como lembrou Max Weber, passou-se a ter militantes, máquinas e rotinas partidárias, modernos políticos profissionais, empreendedores eleitorais - bosses dedicados a fabricar votos para si ou para os seus -, especialistas em agitação e propaganda, técnicos em política. A relação entre governantes e governados, elemento primário da política, alterou-se de modo consistente, afectando particularmente a natureza da liderança política. Chefes plebiscitários, líderes carismáticos, demagogos de novo tipo, Césares regressivos e progressistas, dirigentes que passam a afirmar-se pelas ondas do rádio, dos jornais tablóides, do cinema, da televisão. Por vias tumultuadas e transversas, as massas converteram-se no grande personagem da política no século XX.
Chegados, porém, ao decorrer dos primeiros anos do novo milénio, descortina-se um cenário nada grandioso ou optimista. A democracia não se fixou categoricamente nos sistemas políticos ou no imaginário social, ainda que se tenha reforçado bastante como valor e elemento estruturador das relações sociais; os políticos são olhados com desconfiança crescente, deixando-se enredar nas malhas do escândalo e da corrupção, que cresceram de modo impressionante; os governos funcionam mal, não despertam muitas lealdades e deixaram de ser a principal referência das sociedades; o Estado - que evoluíra como Welfare State e nesta condição atingira um consistente ponto de equilíbrio desestrutura-se a olhos vistos, seja como expressão jurídica de comunidades politicamente organizadas, seja como aparato de organização e intervenção. As massas entraram no sistema político, mas não conseguem direccioná-lo. Em muitos casos, passaram simplesmente a virar-lhe as costas.
Por via da dsestruturação do mundo rural na viragem do XIX para o XX, o século foi também das cidades. Nele, a humanidade convergiu em massa para o mundo urbano. As cidades cresceram como nunca, assimilaram padrões de conforto, higiene e educação jamais usufruídos antes, tornaram-se o centro de todas as grandes decisões políticas e culturais. Apesar disto, não evoluíram como autênticas polis. Converteram-se em amontoados de gente e deixaram de fornecer, aos que nelas moram, as condições de usufruir as vantagens da aglomeração: a festa, a diversidade, a aprendizagem da diferença e do respeito pelo outro, a luta colectiva. Começaram este novo milénio provocando mais repulsa que atracção.
Enfim, como lembrou Eric Hobsbawm na Era dos Extremos, as pessoas chegaram ao final do século XX mais altas e pesadas, alimentando-se melhor e vivendo mais. A economia mundial mostrava-se capaz de produzir bens e serviços em variedade e abundância, a ponto de poder manter viva uma população global muito maior que em qualquer outro período da história. Vivia-se muito melhor que no passado. As pessoas eram incomparavelmente mais cultas, escolarizadas e informadas. O conhecimento científico avançara sem encontrar obstáculos e atingira fronteiras antes consideradas improváveis. A tecnologia dominava o quotidiano dos indivíduos, facilitando as suas vidas e libertando-os de encargos mais pesados. A comunicação encontrava-se enormemente ampliada, e todos podiam, em tese, falar com todos o tempo todo, explorando possibilidades, territórios e culturas até então vislumbradas apenas de longe.
Apesar disso, o princípio do novo milénio não trouxe consigo qualquer acréscimo em termos de felicidade individual ou colectiva. Vivemos envoltos em dilemas e contrastes sufocantes, expostos a evidências assombrosas de quão potente e quão impotente é a experiência humana. A força, a criatividade e o conhecimento caminham abraçados com a fragilidade extrema da espécie, com a reiteração da insegurança, do irracionalismo, do fanatismo, da alienação. Como exemplo. em algumas sociedades, por via destes contrastes, somos protagonistas de uma época em que jovens fazem festas e comunidades inteiras saem às ruas, num delírio aterrador, para comemorar, em nome da justiça divina ou do anti imperialismo, o êxito de operações terroristas que dizimam milhares de vidas inocentes. Em que das entranhas mesmas do país que se apresenta como paladino da liberdade, da justiça e da democracia, emergem assassinos que se dedicam - sem qualquer causa ou razão - a matar crianças em escolas, dinamitar prédios ou a atirar a esmo em transeuntes.
É compreensível, portanto, que uma capa depressiva recubra a vida quotidiana, misturada com o individualismo possessivo e a indiferença, o mal-estar e a incerteza. À ruptura dos laços com o passado somou-se agora um bloqueio em relação ao futuro: a vida sendo vivida como presente interminável, solto de conexões históricas e projectos. Vive-se para o que der e vier, sem muitos planos ou aspirações éticas. Num mundo de velocidade, informação e conhecimentos, parece ter ruído todo o arcabouço de idealizações, crenças e convicções com que a humanidade armara a sua autoconsciência: o fim do grande humanismo, o sofrimento do pensamento crítico, a crise do iluminismo e da sua ideia libertária de progresso, as dificuldades da democracia radical. Hoje, transcorridos os primeiros anos no novo milénio, não há muito que comemorar, mas estamos longe do caos incontrolável. O século XX fez-nos enveredar por um futuro desconhecido e problemático, mas não necessariamente apocalíptico (Hobsbawm). Paradoxalmente, um espesso nevoeiro (sempre o nosso nevoeiro redentor), medo e sofrimento bloqueiam o entusiasmo, mas as possibilidades de avanço materializam-se a olhos vistos. Paradoxo, precisamente.
Em jeito de algum senso comum: - o que está para vir? Tanto quanto em qualquer outra época, a história continuará a processar-se como um movimento aberto, errático, repleto de alternativas. Mas a história não é apenas um jogo de circunstâncias, decisões governamentais, crises estruturais, acasos e necessidades. Nela continuarão a operar o engenho, a generosidade e o empenho democrático dos povos da Terra, com as suas organizações, os seus líderes, as suas massas, as suas culturas. Se o mundo se tornou mais mundo e os problemas que nos afectam são problemas globais, não há saída sem diálogo, sem articulações e esforços de unificação, sem soluções globais. Se os povos da Terra souberem aproximar-se e dar vida a acções democratizadoras combinadas, a pressões inteligentes, a alianças sustentáveis, capazes de impor as suas decisões sobre todos, conseguiremos desenhar um pacto social de novo tipo - um pacto para dignificar a comunidade humana, sem distinções de qualquer espécie e com a devida promoção dos mais frágeis - e fazer com que ele prevaleça sobre a globalização económica. A convivência democrática pode ser mais forte que o Império. Se tal vier a ter lugar, o futuro voltará a ser sonhado (disse Aurélio Nogueira).
(No dia de hoje uma dedicatória ao outro colaborador do ALBARDEIRO)
O DESASSOMBRAMENTO CONTINUARÁ com a ajuda das leituras da ponte Atlântica, entre outros, de Milton Lahuerta, Marco Aurélio Nogueira, Fernando de La Cuadra, Alessia Ansaloni, Leandro Konder, Guido Liguori, Daniel Reis Filho, etc.