A Amnésia Coletiva e o Regresso do Pesadelo
A democracia, dizem os teóricos da política, pressupõe um eleitorado informado e responsável. Mas quando a massa associativa de uma instituição centenária contempla o regresso de quem a saqueou, estamos perante um fenómeno que transcende a mera irresponsabilidade: entramos no reino da patologia coletiva.
O Sport Lisboa e Benfica, catedral do futebol português, prepara-se para cometer um suicídio assistido. A arma? A candidatura (e possível eleição) de Luís Filipe Vieira. O carrasco? Os próprios sócios, armados de uma amnésia seletiva que faria corar os pacientes de Alzheimer.
Outubro de 2024 marca uma data que deveria estar gravada a ferro e fogo na memória benfiquista: a acusação formal por corrupção ativa. Não se trata de especulação jornalística ou teoria da conspiração. O Ministério Público português, com o peso da sua autoridade, acusa Vieira e o seu cúmplice Paulo Gonçalves de desviarem milhões do Benfica para salvar o moribundo Vitória de Setúbal.
Esta operação, tendo em conta a acusação, de lavagem financeira institucional revela a mentalidade feudal do antigo presidente: o Benfica como propriedade privada, os recursos do clube como extensão da sua conta bancária pessoal. Enquanto os sócios pagavam quotas e compravam equipamentos, Vieira transformava o dinheiro sagrado da instituição num instrumento de poder pessoal.
Maio de 2025 trouxe o segundo ato desta sinfonia criminal: o famoso "Saco Azul". Pagamentos fictícios a empresas informáticas externas, lesando o Estado em meio milhão de euros e o clube provavelmente em muito mais. A genialidade infame de Vieira reside na sua capacidade de transformar cada transação numa oportunidade de enriquecimento ilícito.
Que patologia mental explica a tolerância dos sócios perante este curriculum vitae criminal? A resposta encontra-se numa perversa síndrome de Estocolmo coletiva, onde as vítimas desenvolvem uma bizarra admiração pelo seu carrasco.
Vieira não é apenas um ratoneiro comum – é um ratoneiro carismático, um predador institucional que soube criar uma narrativa de sucesso desportivo para mascarar a sua voracidade financeira. Os títulos conquistados transformaram-se numa espécie de indulgência medieval, absolvendo qualquer pecado presente ou futuro.
Esta amnésia estratégica permite aos sócios ignorarem convenientemente a Operação Lex, o Mala Ciao, os Vouchers, os Emails e o surreal E-Toupeira. Cada processo judicial é arquivado mentalmente como "perseguição política", cada acusação transformada em "inveja dos rivais".
A relação entre Vieira e o "Rei dos Frangos" ilustra na perfeição a natureza oligárquica do sistema vieirista. Durante meio século de amizade, os dois homens construíram uma rede de interesses que transformou o Benfica numa extensão dos seus negócios pessoais.
A operação de 2019, onde ações foram compradas a um euro para serem vendidas a cinco, representa o epítome da arte vieirista: converter a paixão benfiquista em lucro pessoal. A CMVM, órgão regulador do mercado de capitais, não teve dúvidas: tratava-se de um "esquema ardiloso" para quintuplicar um investimento através de informação privilegiada.
Mas os sócios, cegos pela nostalgia dos sucessos passados, preferem ignorar que cada título conquistado teve como contrapartida uma fatia da alma institucional vendida ao melhor licitante.
Setembro de 2019 ficará para a história como o momento em que a máscara civilizacional de Vieira caiu definitivamente. Apertar o pescoço de um associado numa Assembleia Geral não é um "momento de tensão" – é a manifestação física de uma mentalidade autocrática que considera qualquer oposição como traição.
Este episódio, registado em ata oficial, deveria ter sido o ponto de não retorno. Em qualquer sociedade minimamente civilizada, um dirigente que agride fisicamente um associado seria imediatamente banido. No universo vieirista, transformou-se numa anedota, um "momento menos feliz" de um líder "apaixonado".
A eventual reeleição de Vieira representaria algo muito mais grave do que a simples escolha de um mau presidente. Significaria a normalização definitiva da corrupção institucional, a aceitação de que o roubo é tolerável desde que acompanhado de sucesso desportivo.
Esta distopia não é ficção científica – é a realidade tangível de uma sociedade que perdeu a capacidade de distinguir entre o certo e o errado, entre o líder e o parasita, entre o construtor e o destruidor.
Quando uma instituição de 120 anos aceita ser governada por um homem com mais processos judiciais do que anos de honestidade, estamos perante a morte simbólica dos valores que a fundaram. Os "pais fundadores" não sonharam com um clube que servisse de lavandaria para fortunas ilícitas.
O Benfica de Vieira não é o Benfica dos sonhos infantis, das tardes de domingo no estádio, das lágrimas de alegria após cada vitória. É uma empresa familiar disfarçada de clube de futebol, onde o património coletivo serve os interesses de uma elite parasitária.
Se os sócios escolherem novamente este caminho, estarão a escrever o epitáfio da própria paixão. Porque não há títulos suficientes para lavar a mancha da desonestidade, não há troféus capazes de restituir a dignidade perdida, não há vitórias que justifiquem a traição aos valores fundadores.
A escolha é simples: ou o Benfica enterra definitivamente o vieirismo, ou o vieirismo enterrará definitivamente o Benfica. Sete palmos abaixo da terra, como na série televisiva que inspirou esta reflexão, onde cada episódio começa com uma morte e termina com um funeral.
A diferença é que, desta vez, quem escolhe o defunto são os próprios enlutados.
Albardeiro