Agonia da Democracia
Li, na crónica de Miguel Sousa Tavares no Expresso desta semana (28 de março de 2025), uma frase que me fez parar: "O seu programa e o seu génio político é ter sabido interpretar a nova luta de classes, que não é entre quem tem e quem não tem, como imaginou Marx, mas entre quem sabe e quem odeia os que sabem."
A observação, certeira como um golpe de bisturi, desmonta o cerne do fenómeno Trump e do movimento que o rodeia. Não se trata apenas de mais um populista no poder, nem de um mero desvio passageiro na política americana. Estamos perante algo mais profundo, mais perigoso: uma revolta contra o conhecimento, contra a razão, contra os próprios pilares da civilização ocidental.
E, no entanto, Trump não é um acidente. É o sintoma de uma doença que já se espalhou — o desprezo pela verdade, o culto da ignorância, a glorificação do instinto sobre o pensamento. Se a democracia americana, outrora farol do mundo livre, pode ser reduzida a um campo de batalha onde os factos são reféns e as instituições são zombarias, o que nos espera a nós, que ainda acreditamos no diálogo, na ciência, no Estado de Direito?
É sobre isto que escrevo hoje: sobre o desvario Trump, sobre o colapso acelerado de normas que julgávamos intocáveis, e sobre o que significa viver num mundo onde, cada vez mais, saber tornou-se um pecado — e odiar os que sabem, uma virtude.
A frase citada — que distingue a nova luta de classes entre "quem sabe e quem odeia os que sabem" — expõe com crueldade o cerne do fenómeno Trump e do movimento MAGA. Não se trata de uma disputa por recursos ou poder no sentido tradicional, mas de uma guerra contra o conhecimento, contra a "expertise", contra as próprias fundações do racionalismo ocidental. Trump não é um mero demagogo: é o arquiteto de uma revolução anti-iluminista, onde a verdade factual é substituída pelo capricho do líder, onde as instituições são esvaziadas em prol de um personalismo autoritário, e onde o ódio aos "sabedores" — académicos, juízes, jornalistas — se tornou a força motriz de um projeto de poder.
O desprezo de Trump pelos princípios universais das nações civilizadas não é um acidente, mas uma estratégia. Ele não pretende reformar o Estado de Direito; pretende substituí-lo por um regime de arbítrio, onde a sua palavra seja lei. Ao acusar, julgar e condenar sem processo, ao decretar sentenças contra adversários mesmo em solo estrangeiro, ao reduzir a Justiça a um instrumento de vingança pessoal, Trump não está a corromper o sistema — está a demonstrar que, para ele, o sistema nunca teve legitimidade. A Constituição dos EUA, com os seus freios e contrapesos, é um obstáculo a ser demolido. Os direitos individuais? Meros incómodos. A democracia? Um ritual caduco.
O desmantelamento do compromisso com as regras democráticas e a transformação do Partido Republicano num organismo personalista – outrora plural e comprometido com a ordem democrática – revela uma metamorfose perigosa, que já não encontra eco entre os valores civilizacionais que, tradicionalmente, sustentaram as nações ocidentais. Este desdém não se limita às fronteiras internas dos Estados Unidos, mas reverbera globalmente, afetando a credibilidade das instituições democráticas e alimentando um clima de intolerância que pode facilmente transbordar para outras esferas do poder.
O mais perturbador não é a ascensão de um homem assim, mas a metamorfose de um partido outrora pluralista — o Partido Republicano — numa seita servil. O GOP, que já foi um espaço de debate entre conservadorismos distintos, é hoje um apêndice do culto trumpista, onde o autoritarismo não é apenas tolerado, mas celebrado. Os seus membros não ousam contrariar o líder, mesmo quando ele espezinha valores que outrora alegaram defender. O que restou do partido de Lincoln é uma máquina de obediência, que trocou a liberdade pela tirania do homem forte.
É, pois, imprescindível interrogar-nos sobre as raízes deste fenómeno: como foi possível que se chegasse a um ponto em que o desprezo pelos valores humanos, democráticos e civilizacionais se institucionalizasse, legitimasse e, até mesmo, fosse celebrado por uma significativa parcela da população? O repúdio não só aos ideais europeus, como também à própria tradição republicana de pluralidade e equilíbrio, denota uma regressão histórica que, se não for confrontada com rigor e vigilância, pode consolidar um legado de autoritarismo irreversível.
E como chegámos aqui? A resposta está na confluência tóxica entre uma comunicação social fragmentada, uma polarização alimentada por algoritmos, e um ressentimento profundo contra as elites — não por estas falharem, mas por existirem. Trump é o produto de uma sociedade que, em vez de procurar respostas para as suas frustrações, preferiu culpar os que as estudam. O seu movimento não quer soluções; quer vingança.
A Europa, outrora vista como aliada, é hoje desdenhada por esta nova direita americana, que vê a multilateralidade como fraqueza e a diplomacia como submissão. O projeto ocidental, construído sobre ruínas de duas guerras mundiais, está a ser sabotado por quem deveria defendê-lo. E o mundo observa, atónito, enquanto a maior potência global brinca com o fogo do autoritarismo.
A era Trump ilustra um paradigma político onde a ânsia pelo poder supremo sobrepõe-se à preservação dos direitos e da justiça, erodindo os alicerces que mantêm a ordem democrática. Num cenário onde o saber é tanto a ferramenta de emancipação quanto o objeto de ódio, a construção de um futuro sustentável passa inevitavelmente pelo restabelecimento do respeito pelos princípios universais, pelo equilíbrio das instituições e pela defesa intransigente dos valores que, há séculos, moldam a convivência civilizada entre os povos..
Albardeiro