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albardeiro

Albardas e Alforges... nunca vi nada assim! Minto... já vi!

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Albardas e Alforges... nunca vi nada assim! Minto... já vi!

Agonia da Democracia

albardeiro, 29.03.25

Li, na crónica de Miguel Sousa Tavares no Expresso desta semana (28 de março de 2025), uma frase que me fez parar: "O seu programa e o seu génio político é ter sabido interpretar a nova luta de classes, que não é entre quem tem e quem não tem, como imaginou Marx, mas entre quem sabe e quem odeia os que sabem."
A observação, certeira como um golpe de bisturi, desmonta o cerne do fenómeno Trump e do movimento que o rodeia. Não se trata apenas de mais um populista no poder, nem de um mero desvio passageiro na política americana. Estamos perante algo mais profundo, mais perigoso: uma revolta contra o conhecimento, contra a razão, contra os próprios pilares da civilização ocidental.

E, no entanto, Trump não é um acidente. É o sintoma de uma doença que já se espalhou — o desprezo pela verdade, o culto da ignorância, a glorificação do instinto sobre o pensamento. Se a democracia americana, outrora farol do mundo livre, pode ser reduzida a um campo de batalha onde os factos são reféns e as instituições são zombarias, o que nos espera a nós, que ainda acreditamos no diálogo, na ciência, no Estado de Direito?
É sobre isto que escrevo hoje: sobre o desvario Trump, sobre o colapso acelerado de normas que julgávamos intocáveis, e sobre o que significa viver num mundo onde, cada vez mais, saber tornou-se um pecado — e odiar os que sabem, uma virtude.
A frase citada — que distingue a nova luta de classes entre "quem sabe e quem odeia os que sabem" — expõe com crueldade o cerne do fenómeno Trump e do movimento MAGA. Não se trata de uma disputa por recursos ou poder no sentido tradicional, mas de uma guerra contra o conhecimento, contra a "expertise", contra as próprias fundações do racionalismo ocidental. Trump não é um mero demagogo: é o arquiteto de uma revolução anti-iluminista, onde a verdade factual é substituída pelo capricho do líder, onde as instituições são esvaziadas em prol de um personalismo autoritário, e onde o ódio aos "sabedores" — académicos, juízes, jornalistas — se tornou a força motriz de um projeto de poder.
O desprezo de Trump pelos princípios universais das nações civilizadas não é um acidente, mas uma estratégia. Ele não pretende reformar o Estado de Direito; pretende substituí-lo por um regime de arbítrio, onde a sua palavra seja lei. Ao acusar, julgar e condenar sem processo, ao decretar sentenças contra adversários mesmo em solo estrangeiro, ao reduzir a Justiça a um instrumento de vingança pessoal, Trump não está a corromper o sistema — está a demonstrar que, para ele, o sistema nunca teve legitimidade. A Constituição dos EUA, com os seus freios e contrapesos, é um obstáculo a ser demolido. Os direitos individuais? Meros incómodos. A democracia? Um ritual caduco.
O desmantelamento do compromisso com as regras democráticas e a transformação do Partido Republicano num organismo personalista – outrora plural e comprometido com a ordem democrática – revela uma metamorfose perigosa, que já não encontra eco entre os valores civilizacionais que, tradicionalmente, sustentaram as nações ocidentais. Este desdém não se limita às fronteiras internas dos Estados Unidos, mas reverbera globalmente, afetando a credibilidade das instituições democráticas e alimentando um clima de intolerância que pode facilmente transbordar para outras esferas do poder.
O mais perturbador não é a ascensão de um homem assim, mas a metamorfose de um partido outrora pluralista — o Partido Republicano — numa seita servil. O GOP, que já foi um espaço de debate entre conservadorismos distintos, é hoje um apêndice do culto trumpista, onde o autoritarismo não é apenas tolerado, mas celebrado. Os seus membros não ousam contrariar o líder, mesmo quando ele espezinha valores que outrora alegaram defender. O que restou do partido de Lincoln é uma máquina de obediência, que trocou a liberdade pela tirania do homem forte.
É, pois, imprescindível interrogar-nos sobre as raízes deste fenómeno: como foi possível que se chegasse a um ponto em que o desprezo pelos valores humanos, democráticos e civilizacionais se institucionalizasse, legitimasse e, até mesmo, fosse celebrado por uma significativa parcela da população? O repúdio não só aos ideais europeus, como também à própria tradição republicana de pluralidade e equilíbrio, denota uma regressão histórica que, se não for confrontada com rigor e vigilância, pode consolidar um legado de autoritarismo irreversível.
E como chegámos aqui? A resposta está na confluência tóxica entre uma comunicação social fragmentada, uma polarização alimentada por algoritmos, e um ressentimento profundo contra as elites — não por estas falharem, mas por existirem. Trump é o produto de uma sociedade que, em vez de procurar respostas para as suas frustrações, preferiu culpar os que as estudam. O seu movimento não quer soluções; quer vingança.
A Europa, outrora vista como aliada, é hoje desdenhada por esta nova direita americana, que vê a multilateralidade como fraqueza e a diplomacia como submissão. O projeto ocidental, construído sobre ruínas de duas guerras mundiais, está a ser sabotado por quem deveria defendê-lo. E o mundo observa, atónito, enquanto a maior potência global brinca com o fogo do autoritarismo.
A era Trump ilustra um paradigma político onde a ânsia pelo poder supremo sobrepõe-se à preservação dos direitos e da justiça, erodindo os alicerces que mantêm a ordem democrática. Num cenário onde o saber é tanto a ferramenta de emancipação quanto o objeto de ódio, a construção de um futuro sustentável passa inevitavelmente pelo restabelecimento do respeito pelos princípios universais, pelo equilíbrio das instituições e pela defesa intransigente dos valores que, há séculos, moldam a convivência civilizada entre os povos..

Albardeiro

Resposta ao "Poder Absoluto"

albardeiro, 05.03.25

Meus caros, longe de qualquer alarmismo (ainda permaneço integrado!), o texto anterior, da autoria do Hugo, impele-me a um comentário... Um comentário que, com a vossa permissão, recupera parte de uma comunicação que apresentei num encontro sobre Estudos Globais, onde explorei a "Desconstrução" derridiana no contexto da "pós-verdade", analisando as denominadas "unidades de simulacro", tanto na esfera nominal como na semântica. Sem cair em devaneios, já afirmava, num texto que se pretendia debatido, que a humanidade se encontra diante de um limiar crítico. O colapso do Estado social e da democracia representativa não se reduz a uma mera crise institucional; é, antes, a manifestação silenciosa de uma nova ordem neofeudal. A mesma força histórica que, outrora, destruiu os alicerces do feudalismo para erigir o capitalismo liberal, agora pavimenta o caminho para uma configuração de poder inédita, onde os algoritmos e as plataformas digitais emergem como os novos senhores feudais. Invisíveis, desterritorializados, imunes a qualquer escrutínio democrático, estes plutocratas cibernéticos não se limitam a dominar setores estratégicos — reconfiguram subjetividades, infiltrando-se na própria arquitetura do desejo humano.
A nova lógica do poder não reside mais na posse de bens tangíveis, mas na manipulação da informação e na capacidade de condicionar ideologias, corroendo os alicerces da justiça social e da autodeterminação coletiva. A liberdade sobrevive enquanto conceito, mas desprovida de substância, convertida numa simulação algorítmica onde cada decisão é insidiosamente pré-ordenada. O poder assume um caráter omnipresente e intangível, um domínio sem rosto que ultrapassa fronteiras e ciclos políticos, subjugando sociedades inteiras não pelo exercício da força, mas pelo fascínio sedutor da tecnologia. A História repete-se, mas a servidão que se avizinha é mais insidiosa — e potencialmente irreversível.
Vivemos um tempo de rutura civilizacional, no qual o esvaziamento do Estado social e a erosão da democracia representativa preparam terreno para um domínio algorítmico, discreto na forma, mas absoluto na essência. Tal como o colapso das monarquias feudais abriu caminho ao capitalismo liberal, assistimos agora à consolidação de uma nova elite dominante — os senhores cibernéticos — cujo poder reside na manipulação informacional e na engenharia da vontade humana. Esta plutocracia digital não se contenta em monopolizar mercados e recursos: impõe-se na formação das consciências, infiltrando-se nos espaços mais íntimos da vida quotidiana sem legitimidade democrática nem qualquer forma de contrapoder. O seu domínio não conhece fronteiras, ciclos eleitorais ou restrições institucionais, e o seu impacto ameaça transformar sociedades livres em territórios vigiados, onde o destino coletivo se decide nas sombras por uma minoria inatingível.
O que está em jogo não é apenas a transição de um modelo político-económico para outro, mas a própria estrutura da experiência humana, agora sujeita à lógica do controlo algorítmico. Se outrora o poder se impunha pela repressão visível, hoje age pela normalização imperceptível. A liberdade, esvaziada de substância, torna-se um fetiche que apenas mascara a extensão da vigilância. O indivíduo, outrora sujeito da sua própria narrativa, converte-se num objeto programável, reduzido a um conjunto de padrões preditivos que antecipam cada escolha antes mesmo que esta se formule. O paradoxo da modernidade revela-se na sua plenitude: quanto mais conectados estamos, mais previsíveis nos tornamos; quanto maior a promessa de autonomia, mais profundamente nos enredamos na matriz de um controlo difuso.
A questão fulcral não é apenas quem detém este poder, mas a ausência de um mecanismo efetivo de resistência. Não me canso de alertar: é preciso criar e desenvolver mecanismos de entender, lidar e "cuidar" os recursos digitais. Na escola, na universidade, na atividade profissional, no espaço público e na política, temos que "trabalhar" a literacia digital e temos que regular eticamente o seu campo de atuação. Sem um escrutínio democrático que regule a esfera digital, o futuro desenha-se como uma era de soberanos invisíveis e súbditos inconscientes da sua própria servidão. Se a política foi substituída pela gestão algorítmica e a deliberação pública pela engenharia comportamental, então resta a pergunta essencial: haverá um ponto de inflexão antes que a autonomia individual se torne uma ilusão irreversível? Ou já cruzámos esse limiar sem nos darmos conta?

Albardeiro

PODER ABSOLUTO

albardeiro, 01.03.25

Nunca antes tão poucos tiveram tanto poder. Estes superpoderosos são seis, todos americanos, e, dada a sua dimensão mundial, estão fora do alcance dos sistemas de regulação, incluindo o fisco. A sua fortuna pessoal é de centenas de milhões de dólares, atingindo as suas operações financeiras cifras superiores ao PIB de grande parte dos países do mundo. São eles Elon Musk (Space X, Tesla, X), Jeff Bezos (Amazon), Mark Zuckerberg (Meta – Facebook, Instagram, WhatsApp), Bill Gates (Microsoft), Sergey Brin e Larry Page (Google). Com exceção do primeiro, constituem as famosas “GAFAM” (Google, Amazon, Facebook, Apple, Microsoft). Mas, como refere a jornalista francesa de economia (que ocupou cargos de chefia em títulos como Le Figaro, L’Express ou Les Echos), Christine Kerdellant, tais indivíduos detêm um verdadeiro “poder sistémico”: “Não são as fortunas que lhes conferem poder, mas sim o poder que lhes dá as fortunas. No fundo, os seus recursos financeiros importam pouco. O que conta são essas capacidades que os Estados não têm, já não têm ou nunca tiveram. Em certos domínios, substituem os Estados ou opõem-se a estes. Um dia, poderão suplantá-los. Sem terem recebido o aval do povo.”, acrescentando, “Estes seis multimilionários ocidentais prosperam sem entraves porque aqueles que poderiam travá-los não o querem fazer e os que querem travá-los não podem. Representam uma ameaça existencial para as democracias que os alimentam no seu seio” (Christine Kerdellant, Mais Poderosos do que Estados, Lisboa, Edições 70, 2025: 9). São poderosos por causa e, sobretudo, para além das suas incomensuráveis fortunas. E isto é que é inédito na história.
Ao longo dos tempos, a fortuna é seguramente um fator de indução do poder, mas um poder que, podendo influenciar e mesmo confrontar a autoridade pública não tem – pelo menos, nas democracias – a capacidade de a suplantar e alterar decisivamente as regras do jogo. Dos 2668 multimilionários do nosso planeta, segundo a classificação da Forbes 2023, as figuras referidas nem são os primeiros da lista, como é o caso de Bernard Arnault, o patrão da LVMH, Warren Buffett, o nonagenário rei dos investimentos ou Françoise Bettencourt Meyers, herdeira da L’Oréal. Ainda assim, como refere Christine Kerdellant, estes últimos, “Possuem mais dinheiro do que aquele que alguma vez poderão gastar, mas não são transumanistas, não querem modificar a espécie humana, não têm sonhos messiânicos, não utilizam os seus meios colossais para acabar com a morte ou colonizar Marte… e não exercem sobre o psiquismo das jovens gerações a mesma influência nefasta.” (Kerdellant, 2025: 10). O controle, por parte destes “multimilionários das plataformas”, da internet, das redes sociais e da inteligência artificial, dá-lhes um poder desmedido, nunca antes alcançado. Tornando-se intocáveis, “Estes novos super-ricos confiscam aos Estados algumas prerrogativas soberanas, ou seja, funções que deviam decorrer exclusivamente da autoridade soberana. Introduziram-se no setor espacial, na saúde, na defesa, na diplomacia, na educação – ou melhor, no saber e na influência dos espíritos… –, até obterem, em certos domínios, um controlo quase total. São mais ricos, mais influentes e mais ágeis do que a maioria dos Estados-nações. E não prestam contas a ninguém – sobretudo não aos eleitores. Será normal que decidam, no lugar dos cidadãos, o que é bom para eles?” (Kerdellant, 2025: 11).
A sua pretensão à omnipotência e omnisciência é sumamente ameaçadora, quer quando Musk coloca implantes no cérebro de macacos ou de porcos – e, em breve, de seres humanos voluntários –, preconizando a hibridização do homem e da máquina, através da sua empresa Neuralink, ou faz uso das suas enormes capacidades na corrida espacial, em que já são Elon Musk ou Jeff Bezos a fabricar as naves espaciais e os fatos dos astronautas que depois alugam à NASA ou à Estação Espacial Internacional (ou que, no caso da Space X de Musk, lança ele próprio no espaço). A influência que Elon Musk teve na guerra da Ucrânia e que poderá ter num eventual conflito em Taiwan, através do seu sistema de satélites de comunicação Starlink (um terço dos satélites de telecomunicações atualmente em órbita da Terra – cerca de 6 mil – são propriedade do multimilionário sul-africano), é um exemplo cabal do poder desmesurado destes indivíduos e suas organizações.
É também o que se passa no setor da saúde (e respetivos seguros), negligenciado pelo Estado norte-americano, através da apropriação dos ilimitados dados da Web acerca dos seus utilizadores. Bill Gates já faz parte indispensável da governação do mundo em matéria sanitária. Através da fundação filantrópica que criou com a sua esposa Melinda, tem assento na OMS, da qual é o segundo maior doador anual (e, de longe, o maior doador privado), com 751 milhões de dólares – que representa 10% do orçamento desta organização mundial – muito à frente da França ou da China e apenas atrás da Alemanha em 2021 e dos EUA em 2019, tornando-se um elemento indispensável na luta contra a poliomielite ou o paludismo em África, mas decidindo também, sozinho, que vacinas desenvolver, quem vacinar, em que país e em que condições. Para alguns, ele é, de facto, o chefe da OMS.
Igualmente sem qualquer controle ético ou supervisão pública, estão Sergey Brin e Larry Page, os inventores da Google, que querem, nada mais, nada menos, que erradicar a velhice e a morte. Através dos gigantescos investimentos na sua empresa de biotecnologia Calico (California Life Company), exploram desde a manipulação genética até à superação dos nossos limites biológicos através da fusão com robôs, a que, claro, só os mais ricos terão acesso (cf. Kerdellant, 2025: 15-18 e 129). Pretenderão criar uma qualquer “raça superior”, de triste memória? Isso só é possível porque a Google teve 60 mil milhões de dólares de receita em 2022-2023 (quase metade do que ganham, no total, as 40 maiores empresas francesas!) Recorde-se que só em 2021 – em plena pandemia de Covid-19 – as GAFAM tiveram lucros de 300 mil milhões de dólares (cf. Kerdellant, 2025: 98, 201).
E que dizer de Mark Zuckerberg, o dono do Facebook e do Instagram, que detém informações sobre mais de 3 mil milhões de pessoas (um terço dos habitantes do planeta), com uma capacidade ilimitada de influência e um poder que nenhuma ditadura do mundo consegue ter? Se pensarmos que mais de metade da população mundial – em especial os jovens – já só recebe informação através das redes sociais, vemos o perigo que este poder representa. Nas palavras do antigo diretor-executivo da Google, Eric Schmidt, “Sabemos onde estão. Sabemos onde estiveram. Sabemos mais ou menos o que pensam. […] Se eu analisar suficientemente as vossas mensagens e a vossa localização, a utilização da inteligência artificial poderá permitir-nos prever aonde irão.”, para concluir, de forma lapidar: “Se não quiserem que os outros saibam o que fizeram, o mais simples é não o fazerem.” (Kerdellant, 2025: 184-185). É fácil constatar que a utilização generalizada dos dados pessoais – e beneficiando dos respetivos dividendos publicitários – permite influenciar eleições (como se comprovou no caso da Cambridge Analytica, na manipulação digital das eleições norte-americanas de 2016, do referendo do “Brexit” ou das eleições presidenciais romenas de 2024), promover os populismos de extrema-direita e impor uma nova ordem mundial. Aterrador!
Sem qualquer escrutínio democrático, nem controle legal, estamos nas mãos da ambição desmedida e do puro arbítrio, à mercê de um punhado de supermagnatas que a jornalista francesa designa por “feiticeiros do algoritmo”. Uma coisa é certa: esta meia dúzia de indivíduos constituem uma ameaça sistémica sobre toda a humanidade. O seu poder é perene e não está sujeito aos ciclos eleitorais, nem a qualquer espécie de mecanismos de regulação. É este, seguramente, o melhor exemplo do “triunfo da vontade” invocado por Leni Riefenstahl na apologia de Hitler.
Que sociedade é esta que está a ser construída? A que distopia estaremos sujeitos num horizonte assustadoramente próximo? De que falamos quando a disparidade de riqueza – sem paralelo, na história – entre o comum dos mortais e estas personagens não cessa de aumentar? Segundo os cálculos do economista sérvio-americano e responsável da divisão de investigação do Banco Mundial, Branko Milanovic, na sua obra The haves and the have nots: a brief and idiosyncratic history of global inequality, de 2011 (consultada a edição portuguesa de Branko Milanovic, Ter ou não ter, Lisboa, Bertrand, 2012), em que estima o fosso entre a fortuna dos oligarcas e dos seus compatriotas, estamos, nas primeiras décadas do século XX, a falar da seguinte ordem de grandeza: só para dar dois exemplos historicamente famosos, a fortuna de Andrew Carnegie, um dos principais “barões ladrões” da Idade Dourada norte-americana (fins do século XIX, inícios do XX), atingiu o seu pico em 1901, quando adquiriu a US Steel, valendo 225 milhões de dólares, o equivalente ao rendimento anual médio de 48.000 americanos. A fortuna de John D. Rockefeller, por seu turno, orçava em 1,4 milhões de dólares em 1937, correspondente ao rendimento anual de 116.000 americanos (cf. Milanovic, 2012: 50-53). Se compararmos estes números com o que atualmente se verifica, a disparidade de rendimentos teve, desde então, um crescimento exponencial. Como refere a antiga editora-adjunta do Finantial Times e jornalista no The Economist, International Herald Tribune e Washington Post, Chrystia Freeland, em 2005 (no começo da sua carreira), Bill Gates valia 46,5 mil milhões de dólares e Warren Buffett, 44 mil milhões. Nesse ano, a riqueza acumulada pelos 120 milhões de norte-americanos mais pobres (40% da população estado-unidense), totalizava cerca de 95 mil milhões de dólares, isto é, pouco mais que a soma das fortunas destes dois próceres (cf. Chrystia Freeland, Plutocratas, Lisboa, Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2014: 19-20).
Na “plutocracia” que estamos a construir, e de acordo com um memorando estratégico do Citigroup de 2005, “Há consumidores ricos, poucos, e desproporcionados quanto à gigantesca fatia de rendimento e de consumo que tomam para si. E há o resto, os não ricos, uma multidão de muitos, mas que representam uma parte surpreendentemente pequena do bolo nacional.” (cit. in Freeland, 2014: 22). O que é cada vez mais óbvio é que, como disse o afamado advogado norte-americano e Associado de Justiça no Supremo Tribunal dos Estados Unidos de 1916 a 1939, Louis Brandeis, “Nós podemos ter democracia, ou podemos ter riqueza concentrada nas mãos de alguns, mas não podemos ter as duas coisas.” (cit. in Freeland, 2014: 361). Trata-se, portanto, de uma questão de escolha!

Hugo Fernandez