Em janeiro próximo será instaurada mais uma ditadura democraticamente eleita nos EUA. Mais do que uma autocracia, os cidadãos norte-americanos escolheram uma plutocracia, em que o poder do Estado é posto ao serviço de monopólios económicos privados, juntando os interesses do homem mais rico do mundo, Elon Musk, e aquele que, enquanto Presidente americano, será o homem mais poderoso do mundo, Donald Trump (ele próprio um milionário, membro da elite empresarial nova-iorquina). Elon Musk, aquele que Pedro Adão e Silva descreve como “personalidade demiúrgica de perfil ameaçador.” (Público, 22/11/2024), nomeado chefe de uma denominada Agência para a Eficiência Governamental, já definiu a sua ação no sentido de cortar uns apocalípticos 30% no orçamento da Administração norte-americana, mimetizando o que pratica nas suas empresas, “Um exercício que tem assentado no desrespeito pelas leis, no incumprimento das exigências regulatórias (designadamente as relacionadas com a segurança dos produtos) e no abandono de qualquer réstia de decência.” À imagem e semelhança de um Donald Trump, omnipotente e desregrado, sem quaisquer escrúpulos em impor uma senda destruidora e revanchista ao país, em seu – e dos seus comparsas – exclusivo benefício. É o sonho neoliberal em todo o seu esplendor!
Com o poder absoluto nas mãos, Trump fará dos EUA um Estado de partido único, ao seu serviço e como instrumento das suas vinganças pessoais. A divisão de poderes será uma quimera, o sistema de checks and balances será minado, adversários políticos não merecerão qualquer respeito e não se tolerará a mínima desobediência. Como diz Jason Stanley, professor de Filosofia da Universidade de Yale, “Desde a República de Platão, há 2300 anos, que os filósofos compreendem o processo pelo qual os demagogos chegam ao poder em eleições livres e justas, tão-somente para derrubarem a democracia e estabelecerem regimes tirânicos. O processo é simples e nós acabámos de assistir à sua execução” (Público, 8/11/2024). E, em jeito de aviso, acrescenta: “O futuro pode oferecer oportunidades ocasionais para outros disputarem o poder, mas quaisquer que sejam as disputas políticas que se avizinham, muito provavelmente não serão caracterizadas como eleições livres e justas.”
E o que fez o Partido Democrático para contrariar um desfecho que era tudo menos imprevisível? Assobiou para o lado, atabalhoou-se em “jogos de corte” incompreensíveis e sumamente ineficazes, envolveu-se em assuntos de lana-caprina e… insistiu sempre na mesma cartilha neoliberal, ainda que de forma mais dissimulada. É exatamente o que se passa na Europa. Perante o avanço das forças de extrema-direita e populista, os partidos à esquerda – porque, de facto, muitos deles não são de esquerda – deixam-se enredar num indisfarçável embaraço de quem andou anos a contribuir para beneficiar sempre os mesmos, a fomentar a injustiça social, a desregulamentar as economias, a precarizar as existências, a incentivar a rapina dos recursos e a “lei do mais forte”, ou seja, a promover o neoliberalismo.
Ou não será esta eleição de um energúmeno como Trump (vitória em toda a linha, incluindo no voto popular), uma reação desesperada perante uma globalização anárquica, com a gigantesca destruição de empregos, precariedade laboral, degradação das condições de vida de uma imensa maioria da população norte-americana, dissolução do sentimento de pertença e de respeito próprio? Ou a consequência da paralisia a que se remeteu um Partido Democrata, incapaz de reconhecer os seus erros de atuação na sociedade e de pôr fim à insensatez crescente das suas prioridades políticas? Quando os sistemas de educação e saúde colapsam, quando a desigualdade social atinge extremos nunca antes imaginados, quando o nível de vida da generalidade dos americanos não permite fazer face às despesas mais elementares, não se pode esperar grande racionalidade na escolha eleitoral. Nas palavras certeiras de Bernie Sanders, “Não devia ser uma grande surpresa um Partido Democrata que abandonou a classe trabalhadora descobrir que a classe trabalhadora o abandonou”.
As classes média e trabalhadora foram, desde sempre, a base essencial de apoio aos Democratas. Esse eleitorado predominantemente branco, mas com grande expressão também junto dos negros, hispânicos e asiáticos, foi alienado pelo Partido Democrático, por sua inteira responsabilidade. Como refere o politólogo Diogo Noivo, citando o livro dos norte-americanos John Judis e Ruy Teixeira, Were have all the Democrats gone?, de 2023, foi sob a sua governação que se permitiu o crescimento desmesurado e desregulado dos setores financeiro e tecnológico em detrimento da produção industrial, que entrou num processo de decadência e deslocalização para destinos estrangeiros com a mão-de-obra muito mais barata. Permitiu-se mesmo a intensificação da emigração ilegal, para desvalorizar o custo do trabalho e precarizar a situação dos americanos menos qualificados. Acresce que foi pela taxação quase exclusiva da classe média que se sustentaram as políticas sociais, desonerando despudoradamente os contribuintes mais ricos das suas obrigações fiscais em prol de uma sociedade mais justa e harmoniosa. A governação democrática enveredou por agendas identitárias extremas e por formalismos demagógicos pouco consentâneos com os reais problemas da generalidade dos cidadãos: o emprego, a habitação, a saúde, a educação, a segurança. Diogo Noivo, conclui: “A esquerda trocou a luta de classes pelos dogmas das guerras culturais, mas o eleitorado parece mostrar que as condições materiais do indivíduo são mais importantes do que a etnia ou a orientação sexual.” (Diário de Notícias, 10/11/2024).
Com efeito, a importância dada pelos eleitores aos temas da campanha relativos à economia (39%) e à imigração (20%) superaram todos os outros juntos (cf. Diário de Notícias, 10/11/2024). Foram, aliás, as mulheres brancas, os hispânicos (quase metade do eleitorado latino), os negros e os trabalhadores brancos que deram a vitória a Trump. Em todo o caso, a adesão da “esquerda” norte-americana ao neoliberalismo teve consequências bem mais decisivas do que o apelo ao wokismo. Com a inflação e a subida das taxas de juro a afetarem duramente as vidas e expetativas da maioria dos eleitores, Trump ganhou precisamente nas famílias com rendimentos inferiores a 100 mil dólares, enquanto Kamala Harris recolhia a maioria das preferências nas famílias com rendimentos superiores (cf. Público, 10/11/2024). É o mundo ao contrário! A comparação com a situação económica anterior, nomeadamente no período pré-pandemia, e a crescente descrença e ressentimento face às elites políticas, fez os eleitores desejarem uma mudança (para muitos, estou em crer, apesar da boçalidade de Trump). Até porque, como disse com desarmante simplicidade Kellyanne Conway, a diretora da campanha de Donald Trump em 2016, “Para os eleitores, há uma diferença entre o que os ofende e o que os afeta, e os eleitores votam quase sempre no que os afeta.” (Público, 7/11/2024).
Mas fazer de Trump e da sua elite milionária os representantes dos oprimidos e rejeitados da sociedade americana, tornando-os naquilo que eles não são, nem nunca poderão – ou quererão – ser, é um desvario intolerável que os Democratas não conseguiram contrariar. Os eleitores só cavaram mais fundo a sua sepultura. Pensarão que a prometida redução fiscal aos multimilionários irá beneficiar os mais pobres, ou que a completa concentração e desregulação do poder económico e financeiro irá resolver os problemas dos trabalhadores? Pensarão que o ataque aos sindicatos, lhes trará mais regalias laborais? Ou que o corte nas despesas sociais, tornará a sua vida melhor? Acharão que a anulação de direitos e a medievalização da condição feminina será excelente? Já para não falar do incremento das políticas extrativistas e a negação reiterada das alterações climáticas, com consequências ambientais desastrosas e cada vez mais frequentes. Mas foi precisamente nisto que votaram.
As deportações em massa para resolver os problemas de emprego (neste momento, praticamente inexistente), ou a ameaça dos direitos das minorias (direitos que continuam, em grande parte, por cumprir) é simples folclore eleitoral. A maior virtude dos Republicanos foi terem-se aproveitado do estado de desorientação em que as pessoas se encontram, do profundo ressentimento pelo agravamento das suas condições de vida, da sua falta de esperança relativamente ao futuro, fazendo apelo às suas mais elementares inseguranças existenciais e beneficiando da criminosa apatia e negligência dos Democratas. Na inexistência de alternativas credíveis, caminha-se para o desastre. Confirma-se assim, mutatis mutandis, a célebre provocação de Margaret Thatcher, num jantar de homenagem em 2002, doze anos depois de ter deixado o poder na Grã-Bretanha, quando confessou que a sua maior conquista tinha sido “Tony Blair e o New Labour”, pois, “Forçamos os nossos opositores a mudar de ideias.”
Perante semelhantes desmandos, não podemos deixar de recordar as palavras do filósofo seiscentista Étienne de la Boétie, no seu Discours de la Servitude Volontaire (1548), onde este humanista francês afirmava, “c’est le peuple qui s’asservit, qui se coupe la gorge” (ed. Paris, Flammarion, 2010, p. 136). Em que mundo iremos viver?
Hugo Fernandez