Em declarações transmitidas pela televisão, o mundo ficou atónito com a reação destemperada de Benjamin Netanyahu à decisão do TPI de acusar responsáveis governamentais israelitas pelas atrocidades cometidas em Gaza. Disse o primeiro-ministro de Israel coisas como estas: “Sr. procurador de Haia, com que audácia se atreve a comparar os monstros do Hamas aos militares das IDF, o exército mais moral do mundo? Com que audácia compara o Hamas, que matou, queimou, esfacelou, violou e raptou os nossos irmãos e irmãs, aos militares das IDF que travam uma guerra justa, sem paralelo, sem equivalente na sua moralidade? Como primeiro-ministro de Israel, rejeito com repugnância a comparação do procurador de Haia entre a democracia israelita e os assassinos em massa do Hamas. É o total distorcer da realidade.” De moralidade e de distorção da realidade, perante tudo o que se tem passado, estamos conversados. Do que aqui se trata, senhor Netanyahu, é de crime.
Não é Israel – e, portanto, o seu povo – que estão em julgamento. São os delitos de um governo de criminosos. E um governo de criminosos que não hesitam em perverter o sentido do “povo escolhido” do Deus hebraico, emprestando-lhe as tenebrosas ressonâncias históricas da superioridade racial dos alemães nazis – o povo dos senhores (o Herrenvolk) – ou, com efeitos igualmente dramáticos, todo o colonialismo europeu, justificado por uma suposta superioridade civilizacional sobre os povos dominados. Boaventura de Sousa Santos (cuja perspicácia analítica não parece ter sido beliscada pela sua patologia pessoal e suicídio cívico), chama-nos precisamente a atenção para este ponto: “o povo judeu tanto foi vítima da superioridade racial nazi como se transformou em carrasco do povo palestiniano ao assumir a forma de Estado sionista.”, concluindo, “A partir da sua imensa tragédia como vítima, foi criada a oportunidade para se transformar em agressor.” (Jornal de Letras, 6/3/2024).
Aliás, a criação do Estado de Israel resulta da dupla dinâmica da culpa germânica pelo extermínio dos judeus durante o nazismo e do oportunismo colonialista britânico no seu protetorado da Palestina, “resolvendo” o problema judeu sem qualquer consideração pelas populações que aí viviam. No entanto, nada foi resolvido. Nem a culpa, cuja reparação histórica exigiria a criação de um Estado judaico em território alemão – talvez na Baviera! – nem o inevitável conflito que resultou da implantação de Israel numa terra povoada pelos palestinianos. Como sublinha Sousa Santos, não deixa, aliás, de ser uma triste coincidência da história que 1948 tenha sido o ano que simultaneamente assistiu à proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, à criação do Estado israelita pelo sionista David Ben-Gurion e à institucionalização do apartheid na África do Sul. Ironicamente, 76 anos depois, pela mão, precisamente, da África do Sul, foi entregue uma queixa contra Israel no Tribunal Penal Internacional. Inverteram-se os papéis; o sistema de apartheid é agora triste realidade quotidiana de Israel nos territórios árabes ocupados, terrível reminiscência de um passado de segregação racial que os sul-africanos ultrapassaram desde 1994.
Em defesa do direito internacional, o procurador do Tribunal Penal Internacional (TPI), Karim Khan, o advogado britânico de 54 anos ao serviço do TPI desde junho de 2021, solicitou a emissão de mandados de captura para os elementos mais responsáveis dos dois lados da contenda: Yahya Sinwar, dirigente do Hamas em Gaza, Ismail Haniyeh, líder do Hamas, que vive no Qatar, e Mohammed Deif, comandante da ala militar do Hamas; do lado de Israel, Benjamin Netanyahu, Primeiro-ministro e Yoav Gallant, ministro da Defesa. Sendo a eficácia desta ação judicial muito remota, o seu poder simbólico é enorme. Por isso, o antigo chefe do exército israelita e ministro do gabinete de guerra, Benny Gantz, não hesitou em qualificar esta decisão como “um crime de proporções épicas” (Público, 21/5/2024). Se há algo de tragicamente épico são as reiteradas violações do direito internacional por parte de Israel, os sucessivos crimes de guerra, crimes contra a humanidade e genocídio, consubstanciados em ataques intencionais contra a população civil, uso da fome como arma de guerra, sofrimento e tratamento cruel e desumano (até pela política de “terra queimada” seguida pelos israelitas e impossibilidade de prestação dos mais elementares cuidados médicos à população sitiada de Gaza), assassínio e extermínio. Um registo muito semelhante à acusação de extermínio, assassínio, tomada de reféns, violação e outros atos de violência sexual, por parte do Hamas (acrónimo de Movimento de Resistência Islâmica).
Rasgaram-se as vestes no repúdio pela comparação entre a atuação do Estado de Israel e do Hamas. Os americanos vieram, como sempre, na defesa dos seus aliados – a bem dizer, da sua colónia no Médio Oriente – procurando obnubilar as suas próprias origens enquanto nação e o extermínio que levaram a cabo das populações ameríndias indígenas.
Mas, como justamente refere o jornalista Manuel Carvalho, num artigo de opinião particularmente contundente, “não se trata de comparar o que se passa num lado e no outro. Trata-se apenas de notar que em matéria de direitos humanos ou do respeito pela lei internacional não pode haver dois pesos e duas medidas.” (Público, 30/5/2024). E acrescenta aquela que começa a ser uma evidência para a opinião pública internacional: “Como se o estatuto histórico de vítimas que cabe ao povo judeu lhe desse crédito ilimitado para matar inocentes. Como se não fosse evidente aos olhos de todos que Israel está cada vez mais próximo do Hamas, se não na forma, ao menos na substância.” Manuel Carvalho é taxativo na sua conclusão: “O que se passa nas areias de Gaza só nos autoriza a mesma certeza que tivemos em Srebrenica, em Bucha ou nos horrores de qualquer limpeza étnica, no Ruanda ou na Birmânia: Israel tornou-se um Estado terrorista que ameaça a paz mundial, os direitos humanos e os valores da democracia.” Nem mais!
Que o Hamas cometa as atrocidades que cometeu é indesculpável, mas previsível, já que se trata de uma organização terrorista; que seja o Estado de Israel a fazê-lo é incompreensível e intolerável. Como é incompreensível e intolerável a descoberta macabra, por funcionários da ONU, de centenas de corpos com sinais de tortura e evidências de terem sido enterrados vivos nas ruínas dos hospitais de Al Nasser e Al Shifa, ocupados pelas forças militares israelitas. Quando a força aérea israelita bombardeou, no passado dia 26 de maio, um acampamento de pessoas deslocadas em Barkasat, a noroeste de Rafah – zona gerida pelas Nações Unidas e que as próprias autoridades militares de Israel tinham indicado como segura – provocando 45 mortos, a maioria mulheres e crianças, alegando que este ataque se tinha destinado a atingir dois elementos do Hamas, como declarou um porta-voz do Exército israelita, estamos propriamente a falar de quê? Trata-se da mais brutal aplicação da lei de Talião, em que Israel, seguindo à risca a sua criminosa doutrina Dahiya, contra-ataca de forma indiscriminada e desproporcional com vista a dissuadir os seus inimigos.
Perante tal barbárie não podem deixar de nos vir à memória os massacres punitivos de civis inocentes em retaliação de atos de sabotagem e resistência perpetrados pelos nazis durante a 2ª Guerra Mundial: foi o caso da chacina das “Fossas Ardeatinas”, em Roma, a 24 de março de 1944, quando 335 reféns italianos são fuzilados (dez civis italianos por cada soldado alemão morto em um atentado da resistência italiana); em Lídice, na Checoslováquia, a 9 de junho de 1942, com a destruição total da vila, morte de todos os homens, e envio das mulheres e crianças para campos de concentração, em vingança pelo assassinato, pela resistência checa, de Reinhard Heydrich, governador representante do Protetorado da Boémia e Morávia, a 27 de maio desse ano; em Kragujevac na Jugoslávia, em outubro de 1941, quando perto de 3 mil pessoas, muitos deles alunos e professores do liceu são massacrados em represália pelos ataques dos resistentes sérvios na região, nos quais morreram 10 soldados alemães e 26 ficaram feridos, em Oradour-sur-Glane, na região francesa do Limusin, a 10 de junho de 1944, quando 190 homens, 246 mulheres e 207 crianças foram metralhadas e queimadas na igreja local (o maior massacre de civis cometido em França pelos nazis), em represália por ações da Resistência francesa (cf. Pierre Thibault, O Período das Ditaduras 1918-1947, Lisboa, Dom Quixote, 1981, pp. 257-8). Estes massacres seguiam a fórmula diabólica de Adolf Hitler para suprimir qualquer ato de insurgência antinazi: uma proporção de 100 prisioneiros executados por cada soldado alemão morto e 50 por cada soldado ferido. Se, para matar um elemento do Hamas, se acha legítimo dizimar dezenas de palestinianos civis, muitos deles crianças, faz todo o sentido a comparação.
O conflito em Gaza deu, aliás, o pretexto perfeito ao governo sionista de Benjamin Netanyahu para incentivar a ocupação ilegal de mais territórios palestinianos na Cisjordânia. As Nações Unidas tinham já alertado que 2023 tinha sido o ano com maior número de ataques registados de colonos israelitas contra palestinianos. Desde outubro, a ONU registou 848 ataques de colonos, em especial em zonas rurais. Pelo menos 480 palestinianos foram mortos e 5 mil ficaram feridos em ataques do exército israelita e colonos (no mesmo período, 10 israelitas foram mortos por palestinianos, 6 dos quais eram elementos das forças armadas israelitas (Visão, 23/5/2024). Com o atual governo de extrema-direita de Telavive, o movimento de colonização israelita da Palestina ganhou um enorme impulso, com mais recursos, mais armas e maior impunidade. Se, no princípio deste século, havia cerca de 200 mil colonos judeus instalados na Cisjordânia e Jerusalém Oriental, esse número é agora de perto de 740 mil.
Nos nossos dias, na chamada “Terra Santa”, do mar Mediterrâneo ao rio Jordão vivem cerca de 10 milhões de pessoas, metade judeus e igual número de palestinianos. Mas, em 1916, quando Lord Balfour, ministro dos Negócios Estrangeiros do Reino Unido (país que então administrava a Palestina) declarou que “O governo de sua Majestade vê favoravelmente o estabelecimento na Palestina de um lar nacional para o povo judeu.”, mais de 80% da população da Palestina era muçulmana, 10% cristã e apenas 7% judia (Visão, 30/5/2024). Concretizava-se, nessa ocasião, a aspiração suprema da Organização Sionista Mundial, criada no início do século XX, que propagou o mito que está na origem do conflito israelo-palestiniano: “Dar uma terra sem povo [Palestina] a um povo sem terra [os judeus].” Dificilmente a primeira destas asserções era verdadeira.
Em Gaza, o número de palestinianos mortos ultrapassa os 36 mil, na sequência dos ataques do Hamas a Israel que causaram 1.400 vítimas israelitas. Estamos perante a continuação da “Catástrofe” de 1948, quando as milícias sionistas atacaram e ocuparam 78% do território palestiniano, matando e expulsando mais de 750 mil palestinianos, na tentativa de levar a cabo o tresloucado desígnio da formação do “Grande Israel”, a pátria judia entre o rio Jordão e o mar Mediterrâneo. Como refere o historiador israelita Yuval Harari, “Após o ataque do Hamas a 7 de outubro de 2023, os apelos à destruição total da Faixa de Gaza e à morte e expulsão em massa tornaram-se rotineiros nos meios de comunicação israelitas e entre alguns membros da coligação no poder de Israel. No dia 7 de outubro, o vice-presidente do Parlamento, Nissim Vaturi, escreveu na rede social X: «Agora todos temos um objetivo comum — apagar a Faixa de Gaza da face da Terra.» No dia 1 de novembro, o ministro do Património de Israel, Amichai Eliyahu, publicou «O norte da Faixa de Gaza, mais bonito do que nunca. Tudo destruído e arrasado. É, simplesmente, um deleite.» E no dia 11 de novembro, o ministro da Agricultura, Avi Dichter, proclamou «estamos agora a lançar a Nakba [a “Catástrofe”] de Gaza».” (Expresso, 28/3/2024). Perante esta situação, José Pacheco Pereira é perentório: “o que Israel está a fazer é exterminar os palestinianos enquanto palestinianos, numa versão espelhar do que faz o Hamas e todos os grupos radicais, que querem matar judeus por serem judeus.” (Público, 18/5/2024).
A única solução para a resolução deste problema é a existência dos Estados independentes e soberanos de Israel e da Palestina, com o mesmo direito a viveram em segurança dentro de fronteiras definidas e internacionalmente reconhecidas. Como defende Yuval Harari, “O ideal é que cada lado desista da fantasia de se livrar do outro. Uma solução pacífica para o conflito é tecnicamente viável. Há terra suficiente para todos entre o Jordão e o Mediterrâneo para construir casas, escolas, estradas e hospitais para todos.” (Expresso, 28/3/2024). No mesmo sentido, um dos mais prestigiados escritores israelitas, David Grossman, declarou, numa entrevista recente à CNN, “Estamos no Inferno […]. Não podemos justificar o que fez o Hamas a 7 de outubro, embora tenhamos de entender que se os palestinianos não tiverem um lar, um país, nós também não teremos.” (Visão, 30/5/2024).
O Estado sionista de Israel (não confundir com o povo judeu, nem com qualquer posição antissemita) é, cada vez mais, um Estado pária, nas mãos de um bando de criminosos. Justifica-se, assim, o apelo de Boaventura de Sousa Santos: “no mundo de hoje, que ousa pensar em humanidade no seu todo e na igual dignidade da vida humana, todos somos Palestina.” (Jornal de Letras, 6/3/2024).
Hugo Fernandez