A recente escolha do jornalista Sebastião Bugalho para cabeça de lista da AD às próximas eleições europeias, longe de ser um caso inédito (e, muito menos, um exclusivo nacional), constitui mais um sinal da crescente fusão entre os media (em especial a televisão) e o universo político-partidário. Paulatinamente arredados da sua missão original de escrutínio da ação dos governos e denúncia das falhas e abusos das autoridades – o contrapoder que se gostava de invocar – os meios de comunicação social têm-se vindo a transformar em meras plataformas de propaganda política e promoção partidária. Esta situação é tanto mais grave quanto semelhante deriva não só é dissimulada (embora cada vez menos), como enviesada politicamente, não garantindo o pluralismo de opiniões e, desta forma, o direito constitucional a uma informação livre e isenta, base essencial de uma democracia sã. Estamos perante aquilo que José Pacheco Pereira designa por “contínuo político-mediático – ou seja, políticos, jornalistas, «jornalismo» politizado, porta-voz de interesses e políticas, jornalistas-comentadores e comentadores” (Público, 16/3/24). Para este historiador, “O contexto, a atmosfera, a ecologia é do crescente investimento num jornalismo politizado, que começa de manhã, depois circula o dia todo nas rádios e televisões e, por muito que isso indigne os próprios, é hoje maioritariamente, e muito, de direita.”, concluindo mesmo que, “Os resultados eleitorais mostram bem isso, mostram que quem deu o tom comunicacional ao Chega foi o sistema mediático de direita.”
Com o título profissional nº 7134, Sebastião Bugalho, ex-jornalista da TVI24/CNN e recentemente da SIC, é o último exemplo de uma prática de transumância ideológico-comunicacional que teve casos famosos como o de Manuela Moura Guedes em 1995, eleita deputada pelo CDS-PP de Manuel Monteiro ou, em 2002, de Maria Elisa, eleita para a Assembleia da República, nas listas do PSD. O próprio Sebastião Bugalho já tinha integrado as listas de candidato a deputado por Lisboa pelo CDS-PP de Assunção Cristas, em 2019, embora não tivesse sido eleito. A própria proliferação dos comentadores políticos nos vários canais televisivos teve um aumento de 47% nos últimos 8 anos (de 53 para 78), conforme nos revela o estudo “Comentário Político nos Média 2023” do MediaLab, centro de investigação do ISCTE-IUL. Como refere um dos seus autores, o sociólogo Gustavo Cardoso, “o comentário político, em todas as suas formas [continua a ser] uma força vital na formação da opinião pública”; sabendo-se que “a maioria das pessoas com 40 ou mais anos se informa, principalmente, através da televisão”, “Estamos a falar do grupo de pessoas que mais vota. É por isso que uma pessoa que deseje entrar na política tem mais hipóteses de cumprir esse objetivo se aparecer regularmente na televisão.” (Visão, 2/5/24). É a isto que assistimos com alarmante regularidade.
Acresce que esta realidade é politicamente enviesada, estando o comentariado político tomado em mais de 75% pelo espectro ideológico da direita. À esquerda do PS, os comentadores contam-se pelos dedos (o PC há muito que desapareceu do espaço mediático). E, como sublinha Pacheco Pereira, “Quando há gente do PS, são os PS fofinhos que estão sempre prontos a querer aquilo que é, no seu entender, «moderação» com a direita.”, dando um exemplo elucidativo: “A politização do jornalismo nem sempre é resultado da volição política do jornalista; pode ser um efeito do rebanho ou da alcateia, mas é hoje tão comum que ninguém diz «Pára aí» ou «O rei vai nu». A profunda identidade entre os relatos jornalísticos e a agenda da direita foi evidente quanto à «crise dos serviços públicos». Significa que houve «crise»? Sem dúvida, mas teve o alcance dramático com que se relatou? Não.” (Público, 16/3/24). Aliás, desde que o atual governo da AD entrou em funções, desapareceram do espaço televisivo as imagens diárias de “caos” nas urgências ou a notícia de serviços hospitalares encerrados. Terá havido um milagre?!
Esta mistura mediático-política, que António Guerreiro certeiramente descreve como “classe anfíbia: a classe jornalístico-política que se mira no espelho da classe político-jornalística.” (Ípsilon/Público, 26/4/24), apresenta abundantes exemplos. Nos tempos mais recentes, o caso de André Ventura (vindo do comentário desportivo) ou, noutro sentido, Marques Mendes e Paulo Portas (vindos da política ativa como dirigentes partidários e governantes), ou o próprio Marcelo Rebelo de Sousa (cuja carreira política teve um desenvolvimento exponencial derivado da exposição mediática), como já antes tinha acontecido com Pedro Santana Lopes ou José Sócrates. Promover figuras mediáticas na arena política é, como diz o politólogo do ICS, José Pedro Zúquete, “apenas uma maneira de aproveitar essa popularidade e transferi-la para a política, trocando a audiência por votos” (Visão, 2/5/24). Trata-se do desenvolvimento lógico da telepolítica fundada por Sílvio Berlusconi na transição do século XX para o XXI, com o seu enorme império mediático, Mediaset. O estudo, “Comentário Político nos Média 2023”, a que anteriormente nos referimos, conclui que o comentário político tirou espaço mediático à informação factual, o que constitui “um sério risco” de desinformação e manipulação das consciências, contribuindo para a confusão entre o que é jornalismo e o que é opinião: “As motivações político-partidárias podem condicionar a perceção da realidade.” (Visão, 2/5/24). O sociólogo Gustavo Cardoso, acrescenta:” Não é positivo que o comentário televisivo surja numa lógica de antecâmara ou de progressão da carreira política. Se as pessoas que estão na televisão se preocupam apenas em subir na hierarquia de um partido, em defendê-lo, em posicionar-se de forma a obter ganhos, então, temos um grave problema, mau para as próprias televisões, que passam a ter os seus conteúdos permanentemente condicionados por interesses de terceiros”, o que mina irremediavelmente o rigor, isenção e imparcialidade que deve nortear o jornalismo.
Com efeito, “os media, para aumentar influência, receitas e audiências, passaram a apostar num jornalismo que foi cedendo espaço de investigação e reportagem ao comentário infinito, feito de duelos inflamados e de um dissenso fulanizado, rude e ofensivo, que de facto transforma divergência em dissidência.” (Sandra Monteiro, Le Monde Diplomatique ed. portuguesa, maio 2024). Os debates televisivos para as últimas eleições legislativas são disso um bom exemplo. Tempo restrito (tão restrito que se assemelhava a uma simples luta de galos) para os representantes dos vários partidos explicarem as suas propostas, seguidos de horas e horas a fio de comentário nos diferentes canais televisivos e plataformas digitais, numa total perversão do que deve ser o confronto democrático: exposição serena e desenvolvida das várias posições em presença e não mera chicana política, em que se mandam umas “bocas” e se procura, no enfrentamento abrupto, soez e, de preferência, gritado, a humilhação do adversário e não a avaliação das suas ideias. A guerrilha populista em todo o seu esplendor! A lógica é a do entretenimento mediático (ou, para sermos mais precisos, a da alienação), característico do futebol – “quem ganhou?”, “quem perdeu?” – em vez do debate sério e ponderado, próprio do esclarecimento democrático.
Esta crise da democracia é alimentada pela crise do próprio jornalismo. Veja-se como um grupo obscuro denominado Global Media quase aniquilou órgãos de comunicação social portugueses tão importantes (e alguns seculares) como os jornais Diário de Notícias e Jornal de Notícias ou a rádio TSF. O modelo económico em que assentam estas empresas acaba inevitavelmente por fazer perigar o jornalismo enquanto atividade profissional, situação em que as regras deontológicas se desvanecem em favor de outros interesses. Em vez de cumprir a sua missão escrutinadora dos poderes públicos e de garantia da liberdade de expressão – o tal 4º poder – os media vão-se transformando em simples correias de transmissão político-partidária em prol da constituição de um novo poder ou de apoio ao poder instituído. A greve geral dos jornalistas, ocorrida a 14 de março último, é um sinal de desespero perante o agravamento da situação de indignidade em que estes trabalhadores exercem a sua função, marcada pelos baixos salários, a precariedade, a sobrecarga laboral (cada vez menos profissionais), os conflitos éticos e deontológicos, a degradação generalizada das condições de trabalho. Trata-se da segunda greve geral dos jornalistas em democracia (a primeira foi há mais de 40 anos, em 1983), marcada pelo Sindicato dos Jornalistas após moção aprovada no Congresso dos Jornalistas que decorreu em Lisboa, em janeiro passado. O presidente do sindicato, Luís Simões, declarou, a este propósito que “há anos que tentam partir a espinha do jornalismo e dos jornalistas”, e que o “descalabro e o nível de destruição a que assistimos nos últimos meses pôs a nu, e da pior forma, a gravidade das condições de exercício do jornalismo em Portugal.” (Visão, 14/3/24). Como é referido, nos últimos sete anos, 436 jornalistas deixaram a profissão (há 5274 titulares de carteira profissional), verificando-se perdas de 40% no seu rendimento em 20 anos, com grande “pressão para a hiperprodutividade” (trabalham mais de 40 horas por semana e quase metade trabalha mais de dez horas semanais em período noturno) e “níveis de burnout assustadores” (a alcançar os 48%).
A irrupção do digital, dominado pelas redes sociais e empresas de conteúdos, bem como o aproveitamento gratuito do trabalho jornalístico por parte das grandes plataformas informáticas, vieram agravar a situação. Como revela o sociólogo Roberto della Santa, investigador do Observatório para as Condições de Vida e Trabalho e cocoordenador, em 2022, do Inquérito Nacional às Condições de Vida e de Trabalho dos Jornalistas em Portugal, promovido pela Associação Portuguesa de Imprensa, a Casa da Imprensa e o Sindicato dos Jornalistas e realizado pela Universidade Nova de Lisboa, “Existe um sofrimento ético profundo que provém da importância social da profissão. Surgem conflitos ou, pelo menos, potenciais contradições, entre aquilo que os jornalistas valorizam ou consideram um trabalho bem feito e aquilo que algumas direções determinam como prioritário e fundamental.” (Visão, 14/3/24). Há ainda um fator a ter em conta, como lembra Pacheco Pereira: “O jornalista que usa como fonte as redes sociais está a suicidar-se como jornalista, como se frases sem edição ou contexto, pseudofactos ou fake news pudessem ser considerados fontes noticiosas.” (Público, 20/1/2024). A esta ausência de intermediação e estrito cumprimento das regras deontológicas e profissionais do jornalismo, acresce que a falta de rigor e qualidade do trabalho efetuado (no sentido de um serviço digno de informação) radica, cada vez com mais frequência, num redirecionamento de interesses e numa autocensura dos jornalistas, impostos pela promiscuidade entre administrações, conselhos redatoriais, anunciantes e financiadores (como é o caso da recorrente prática dos “conteúdos patrocinados”, altamente lesiva da independência editorial). A falta de isenção e de pluralismo político e social e a sub-representação crónica de posições e propostas de esquerda, são a consequência direta desta concentração da propriedade dos meios de comunicação social em meia dúzia de grandes grupos empresariais, num contexto crescente de precarização, exploração, e financeirização geral das sociedades.
Pedro Coelho, jornalista da SIC e presidente da comissão organizadora do 5º Congresso dos Jornalistas, que decorreu entre 18 e 21 de janeiro passado, declarou, numa entrevista à Rádio Renascença, a propósito da crise económica do setor, “Gerar lucro é saudável. Agora, não podemos pedir ao jornalismo que tenha força de gerar lucro financeiro porque na base do jornalismo não está o lucro de uns quantos proprietários de meios de comunicação social, mas uma necessidade urgente de gerar lucro social. É disso que estamos verdadeiramente a falar. Esta vontade e necessidade de servirmos e de trabalharmos para o público transforma o jornalismo numa profissão que é, claramente, um bem público que teremos de preservar.” (Diário do Alentejo, 26/1/2024). É esse “lucro social”, que se baseia no direito à informação e se traduz na liberdade de expressão e pensamento – pilares fundamentais da democracia – que está ameaçado.
Hugo Fernandez