“Acho que é fantástico, 50 anos depois do 25 de Abril, que nós tenhamos 50 deputados. Acho que não podia haver maior ajuste de contas com a História”, declarou André Ventura, ufano, ao jornalista Vítor Gonçalves, no programa “Grande Entrevista” da RTP1 (22/3/24), dias depois de ter conseguido alcançar 18% dos votos nas eleições legislativas antecipadas de 10 de março (cerca de um milhão e 100 mil votos).
As razões de tal feito são claramente sintetizadas no recente livro de Vítor Matos, Na cabeça de André Ventura (Lisboa, Zigurate, 2024). O jornalista do Expresso mostrou como o líder do Chega soube federar e dar voz a uma série de descontentamentos presentes na sociedade portuguesa, como “o racismo envergonhado, o ressentimento contra as elites e os políticos, a raiva dos que viveram toda a vida revoltados com a sua condição, os que se sentem excluídos, ou uma parte da direita que nunca se encaixou na democracia” (Público, 25/2/24). A defesa de todo um ideário que deveria ser motivo de vergonha, não só demonstrou ter uma recetividade cada vez mais alargada, como já não sente qualquer pejo em fazer-se ouvir. Trata-se, apesar de tudo (ou, se quisermos, por enquanto!), de uma minoria, ainda que muito ruidosa. E, ao contrário do que é propagandeado – “a voz do Portugal esquecido”, como proclamou Ventura, no congresso de Santarém, em 2023 –, este alegado protesto contra as elites e postura “antissistema”, não passam de um mito que, como todos os mitos, têm grande poder de persuasão, mas assentam essencialmente em falsidades e em distorções da realidade. Longe de representar qualquer ameaça para o sistema – capitalista, pois claro! – o Chega apenas quer ter a força suficiente para trocar de elites do poder, aproveitando-se da irreflexão e credulidade de populações que se sentem genuinamente desprotegidas e ameaçadas pela globalização neoliberal.
O Chega é um franchising do movimento internacional de extrema-direita do radical norte-americano Steve Bannon. A única novidade que traz, desde o seu surgimento em 2019, é ter chegado a Portugal. De resto, com uma ou outra variante nacional, o receituário populista é sempre o mesmo: fórmulas simples para problemas complexos. Não só não resolvem nada como, ao aprofundarem as disfuncionalidades da democracia liberal e as desigualdades e injustiças do capitalismo, perpetuam a concentração do poder e da riqueza nas verdadeiras elites dominantes, não nas figuras mediáticas ou nas personalidades públicas que vão passando ao sabor dos tempos. Até o insuspeito (porque assumidamente liberal) Pedro Marques Lopes reconhece esta circunstância quando, na sua habitual crónica da Visão, “Politicamente correto”, escreve, “os Venturas e quejandos não passam de oportunistas que não querem saber da vida das pessoas e que apenas exploram os seus sentimentos primários para criar um mundo onde todos viverão pior e onde uma elite viverá ainda melhor.” (Visão, 14/3/24). Aliás, na descrição sociológica do Chega que faz Francisco Mendes da Silva, advogado e comentador político próximo do CDS, “Há ali muitos privilegiados, bem instalados, a impulsionarem a energia suicida do populismo. Se tudo rebentar, esses safar-se-ão. Os realmente desprotegidos é que não.” (Público, 15/3/24). Atentemos, por isso, no aviso que nos faz a escritora e jornalista Ana Cristina Leonardo, na sua rubrica do Ípsilon, “Não sejamos, porém, ingénuos. Se o populismo representa um escape e um protesto, alguém o financia. E não são decerto os deserdados da Terra a fazê-lo. Estará, pois, na altura de rever Os Malditos de Visconti. Já lá estava (quase) tudo.” (Ípsilon, Público, 15/3/24).
A exaustiva investigação do jornalista Miguel Carvalho no Público (25/2/24) é, a este propósito, deveras elucidativa. Os apoios do Chega vão desde sociedades de investimento imobiliário, como a do cônsul honorário da Roménia em Portugal, Alain Bonte, que também tem avultados interesses na indústria farmacêutica, seguros e informática, em parceria com uma das mulheres mais ricas e poderosas da Roménia, Catia Radulescu, a donativos oficiais de membros dos clãs Mello e Champalimaud (como é o caso do empresário e gestor Miguel Sommer Champalimaud), de João Bravo, o mais importante vendedor de armas e equipamento militar ao Estado português, de Miguel Costa Félix, empresário do setor imobiliário e turismo, de Frederico Pais, fundador do portal Alerta Emprego e da Betting Connections, consultora sediada em Malta e empresa líder no recrutamento para a indústria de jogos e apostas online, de Jorge Ortigão Costa, do grupo Sogepoc, de Salvador Posser de Andrade, ligado à Coporgest e imobiliário (antigo vice-presidente do Chega), da família Pedrosa, dona do grupo Barraqueiro, do engenheiro Luís Delgado e Silva, antigo gerente de operações na Schlumberger (líder mundial em serviços petrolíferos) e dirigente da secção portuguesa da Society of Petroleum Engineers, do empresário do setor dos transportes, José Paulo Duarte, do engenheiro Luís Aguiar de Matos, criador de cavalos e antigo vice-presidente do Sporting na direção de Sousa Cintra, do historiador Carlos Alberto Damas, ex-alto funcionário do BES e biógrafo da família Espírito Santo, do coronel de infantaria aposentado Cordeiro Simões, comandante de um batalhão em Timor, membro do Comando da Força Conjunta Aliada da NATO e conselheiro da embaixada portuguesa na Áustria, ou da família Pacheco de Amorim, nomeadamente de Francisco Pacheco de Amorim (irmão do dirigente e principal ideólogo do Chega, Diogo Pacheco de Amorim), da sociedade Pares by Construmed, que gere mais de 100 milhões de euros em património imobiliário e é líder no mercado de arrendamento.
A estes juntaram-se elementos da aristocracia, como a família Mendia, donos e gestores de instituições financeiras, imobiliário, turismo e restauração, ligados à Portucale e Grupo Espírito Santo (envolvidos no escândalo Paradise Papers), Luís Lencastre Lima Raposo, do conselho fiscal do Grupo Reditus (tecnologias de informação e serviços de outsourcing) ou José Cunha Coutinho, antigo candidato do PPV – Portugal Pró-Vida – e Cavaleiro da Ordem de S. Silvestre pelo Vaticano. De entre os apoiantes do Chega presentes no jantar de notáveis no restaurante Montes Claros, em Monsanto, a 5 de fevereiro de 2020, quando André Ventura se candidatou a Belém, contaram-se o advogado Jorge de Abreu, José Morais Cabral, ex-CDS, fundador da CIP e ligado a negócios farmacêuticos, João Talone, sexto visconde de Ribamar, gestor e ex-CEO da EDP, Cristina e Teresa Roque, herdeiras do falecido banqueiro Horácio Roque, do Banif, André Luiz Gomes, advogado de Joe Berardo, Rita Salgado, empresária do ramo alimentar, ligada ao movimento ultracatólico Schoenstatt, o médico João Almeida e Castro, presidente da IPSS Ser+ (organização para a prevenção e combate à Sida), dirigente do Porsche Club 356 de Portugal e com negócios no imobiliário de luxo, bem como a jurista Aida Franco Nogueira, filha do antigo embaixador e ministro dos Negócios Estrangeiros de Salazar, Franco Nogueira. Dificilmente poderemos considerar estes personagens “desvalidos da sorte” e, muito menos, elementos “antissistema”.
Claro que o fenómeno do populismo de extrema-direita é difícil de combater, especialmente quando os sucessivos governos PSD e PS que, desde o 25 de Abril, se têm perpetuado à frente dos destinos do nosso país, renunciaram a resolver os problemas com que se debatem a generalidade das pessoas, insistindo na mesma fórmula exploradora, especulativa e extrativista de funcionamento da sociedade. Nestas circunstâncias, emergem com facilidade posições extremistas e narrativas contra factuais, configurando o que se designou por “pós-verdade” ou “realidade alternativa”, tão características dos desvarios do consulado Trump. Como justamente refere a escritora Dulce Maria Cardoso, “A ligação dos abandonados ao populismo é, assim, essencialmente emotiva. E como tal irracional e quase indestrutível. Esse alguém [o líder populista] dirá e fará o que quiser que os seus seguidores secundá-lo-ão.” (Público, 8/3/24). A mesma atitude de crença e de insensatez tão bem explicitada no Facebook do ex-sargento para-quedista e apoiante do Chega, Cândido de Oliveira, quando, ao insurgir-se contra os políticos, declara, “Só o cano frio da espingarda encostado à testa é capaz de impor algum respeito.” (P2, Público, 25/2/24).
Por isso, fazemos nossas as palavras de Miguel Esteves Cardoso quando lembrou, no próprio dia do escrutínio, “Diz-se que «já não há fascismo nem nazismo». Pois não. Mas a natureza humana não mudou, e os instintos humanos que levaram ao fascismo e ao nazismo continuam a ser os mesmos de sempre.” (Público, 10/3/24). Ou, como sublinhou mais cruamente Dulce Maria Cardoso nas vésperas das eleições e perante sondagens inequívocas da implantação do Chega, “Afinal, o monstro estava apenas adormecido. Nem podia ser de outra maneira. O monstro nunca morre.” (Público, 8/3/24). E assim estamos.
Hugo Fernandez