Poderá, numa democracia, um governo governar contra a vontade maioritária e reiteradamente manifestada da população? Poderá o “governo do povo, pelo povo e para o povo”, na definição lapidar de Abraham Lincoln no célebre discurso de 1863, em Gettysburg, deliberar contra o povo? A julgar pelo que se passa em França com o aumento da idade da reforma, parece que sim. De forma esmagadora (as sondagens à opinião pública contabilizam cerca de 70% de opositores à reforma e até 90% quando apenas se conta a população ativa) e reiterada (com constantes manifestações nas principais cidades francesas), a resistência francesa ao aumento da idade da reforma dos atuais 62 para os 64 constitui uma enorme onda de contestação à reforma que o Presidente Emmanuel Macron e a sua primeira-ministra, Elisabeth Borne, querem impor a todo o custo, juntando gente de várias idades, profissões e condição social.
Apesar das mobilizações recorde – cerca de 300 manifestações e comícios no dia 7 de março e 3,5 milhões de manifestantes nas ruas – desde a primeira jornada de luta, a 19 de janeiro, que o adiamento da idade da reforma foi imposto de forma intransigente pelo Governo de Macron, usando todo o tipo de expedientes legislativos manhosos para o conseguir: limitar a duração dos debates parlamentares (artigo 47-1 da Constituição), obrigar à votação da reforma em bloco e não artigo a artigo (artigo 44-3) e, finalmente, a 16 de março de 2023, o tristemente “célebre” artigo 49-3 que autorizou a dispensa do voto dos deputados da Assembleia Nacional, remetendo a lei diretamente para o Senado. Assim, como refere o historiador Benoît Bréville, “No final, a sua reforma das pensões, que compromete a vida dos franceses para várias décadas, só terá sido aprovada por senadores eleitos por sufrágio indireto, que cuidaram de proteger o seu próprio regime especial no momento em que eliminavam os dos outros.”, acrescentando que “Os dois anos de trabalho suplementar impostos sem aprovação da Assembleia Nacional apenas assentam, assim, na legitimidade de uma instituição dominada por um partido (o Republicanos) que não ultrapassou 5% dos votos nas últimas eleições presidenciais, e da qual estão ausentes as duas principais formações (a Reunião Nacional [RN] e a França Insubmissa [LFI]…” (Benoît Bréville, “Um povo de pé, um poder obstinado”, Le Monde Diplomatique, ed. portuguesa, abril de 2023).
O próprio Macron, na primeira volta das eleições presidenciais há um ano (24 de abril de 2022), apenas obteve 20,7% dos votos, contando para a sua vitória na 2ª volta (58,5%) com os votos daqueles que queriam barrar Marine Le Pen, conforme o próprio reconheceu na noite da vitória: “Eu sei que muitos dos nossos compatriotas não votaram em mim para apoiar as ideias que eu defendo, mas para fazer barragem à extrema-direita. […] Tenho consciência de que este voto me obriga para os próximos anos.” Compromisso rapidamente esquecido quando, a 21 de março último, afirmou, sem qualquer rebuço, “A multidão não tem legitimidade face ao povo que se exprime através dos seus eleitos”. Como se lê no Le Monde Diplomatique, “O mundo político perdeu crédito, deteriorado por governos cujo objetivo é tornar felizes os acionistas […]. Quando a orientação é o desprezo pelas pessoas comuns, os dirigentes só alimentam dois tipos de reações: a resignação ou a revolta. Eles apostam na resignação, mas o desejo de viver uma vida digna reacendeu a força de lutar entre os menos politizados e remobilizou sindicatos.” (“Pensões de reforma: onda de choque em França”, Le Monde Diplomatique, ed. portuguesa, abril de 2023).
Esta forma de atuar, que está longe de ser caso único e que encontra em Portugal exemplos similares (a ostracização de classes profissionais inteiras, como a dos docentes), não pode deixar de merecer alguma reflexão. Antes de mais pelo significado que estas medidas têm na vida das comunidades. É que, como refere Paulo Pedroso, sociólogo e ex-ministro do Trabalho, em entrevista ao Público (8/4/23), “um sistema de segurança social, para ser forte, tem de merecer a confiança das pessoas. É preferível uma reforma menos perfeita e negociada do que uma reforma que pareça perfeita e que não é aceite.” Se a média da idade da reforma dos países da União Europeia está nos 65 anos e em Portugal nos 66 anos, não se terá ido já longe de mais?
Embora o progressivo envelhecimento da população, a crescente digitalização e as transformações do mundo do trabalho sejam realidades presentes na generalidade dos países europeus, há questões que devem ser tidas em conta e que os cidadãos insistentemente reclamam: não só se têm de encontrar novas fontes de financiamento dos sistemas de segurança social (nomeadamente através da taxação das gigantes tecnológicas), combater com eficácia a evasão fiscal e promover o fim das offshores, como potenciar as indústrias e serviços ligados aos reformados e pensionistas que podem constituir um fator acrescido de dinamismo da economia. Longe de serem uma população descartável, reformados e pensionistas são cidadãos ativos e intervenientes na sociedade. Podem representar simultaneamente uma oportunidade de reforço da coesão social e de desenvolvimento económico.
Está também em causa o entendimento da própria democracia. O princípio da soberania popular, ainda que a governação obedeça aos ditames da representação política e do jogo parlamentar, poderá reduzir-se à periódica liturgia eleitoral? Poderá o sistema democrático limitar-se a uma competição pelo voto popular para a conquista do poder, subsumindo a realização do bem comum a um mero cálculo eleitoral? Tratar-se-á de um simples jogo de elites, corporizado na formação de uma “classe política” – segundo a conhecida designação do politólogo italiano Gaetano Mosca – ou a emanação de uma verdadeira cidadania? Ecoam as palavras de Jean-Jacques Rousseau, no livro III do seu Du Contrat Social (1762): “Le peuple anglais pense être libre, il se trompe fort; il ne l’est que durant l’élection des membres du parlement: sitôt qu’ils sont élus, il est esclave, il n’est rien.” (Paris, Le Livre de Poche,1996, p. 118). Neste caso, estaremos perante o domínio efetivo da democracia ou apenas da sua encenação? Queremos uma democracia “de baixa intensidade”, em que à votação maioritária se deseja que corresponda uma resignação cidadã, ou não será a possibilidade da população se fazer ouvir – e ser tida em conta – fora dos períodos eleitorais, condição sine qua non para uma democracia plena?
É a democracia participativa que confere substância à democracia representativa. Só a articulação das duas vincula governantes e governados aos pressupostos da cidadania, evitando simultaneamente o poder excessivo da “classe política” e o populismo das soluções plebiscitárias. Ainda que o interesse geral não coincida, naturalmente, com o interesse de todos, é fundamental que a governação não se reduza ao interesse de alguns. Nesse caso, estaremos perante o que Boaventura de Sousa Santos descreve como a “liquidação do potencial emancipatório da modernidade pela via dupla da hegemonização da racionalidade técnico-científica […] e da hipertrofia do princípio do mercado em detrimento do princípio do Estado e com o «esquecimento» total do princípio da comunidade rousseauiana.” (Boaventura de Sousa Santos, Pela Mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade, Porto, Afrontamento, 1994, p. 208). Como conclui, mais adiante, o sociólogo coimbrão, “O capitalismo [liberal] não é criticável por não ser democrático, mas por não ser suficientemente democrático.” (ibid. p. 232).
Uma influência real dos cidadãos na governação permitirá a sua vinculação à democracia e assegurará a harmonia da sociedade. As pessoas precisam que os seus problemas encontrem eco nas políticas públicas. O seu afastamento da participação política (exceto nos momentos eleitorais pontuais), levará à descrença na democracia. E esta conduzirá, inevitavelmente, ao populismo e à tirania. Como sublinham o economista Jean-Paul Fitoussi e o historiador Pierre Rosanvallon, “A ascensão do populismo deve ser compreendida a partir das diferentes figuras da deceção democrática. A crise política alimenta-se antes de mais do sentimento de traição da representação: os representantes não fazem o que os representados desejariam.” (Jean-Paul Fitoussi e Pierre Rosanvallon, A Nova Era das Desigualdades, Oeiras, Celta, 1997, p. 135).
Hugo Fernandez