Imagine-se a seguinte cena: numa escola americana, um aluno (Danny) confronta a professora por ter tido má nota num teste de Matemática. A professora explica-lhe que está com dificuldades nas operações de adição, exemplificando que este respondeu 22 à soma de 2+2. Numa atitude pedagógica, a professora diz: “Não fiques aborrecido; estás aqui para aprender e nós aprendemos com os nossos erros.”, ao que o petiz profere um sonoro e frustrado “Nãaaao!” A professora tenta demonstrar-lhe o cálculo que devia ter feito mas, perante a resposta correta, o aluno exclama, “Isso é estúpido”, insistindo que o resultado certo é 22 em vez de 4, e saindo intempestivamente da sala. No dia seguinte, a professora recebe a visita dos pais do Danny. Quando esta lhes diz que o aluno respondeu 22 ao resultado da soma de 2+2, os pais olham surpreendidos um para o outro e questionam, “E…?”, ao que a professora esclarece, incrédula, que essa não é a resposta certa, mas sim 4. A mãe da criança pergunta, então, à professora, “Quem disse?”, ao que esta responde calmamente, “A Matemática disse”. A troca de palavras sobe de tom, com os pais a acusarem a docente de estar a chamar o seu filho de “burro”, o que esta prontamente nega. Irritado, o pai pergunta-lhe: “Quem é você para afirmar que a sua resposta está certa e a do meu filho errada?” Começam os insultos, com o pai a alegar que o filho “é um livre pensador”. A professora acaba por ser agredida pela mãe do aluno. É apresentada queixa à direção da escola, que exige à docente um pedido de desculpa aos pais, alegando que “não é trabalho dos professores dizer quando os alunos estão certos ou errados.” Perante a recusa em pedir desculpa, a docente é suspensa de funções, enquanto “reconsidera as suas atitudes extremistas”.
Entretanto os pais do Danny promovem uma campanha pública contra a professora, processando a escola por esta ter causado “stress emocional a um menor”. Dias depois, face à posição assumida, a docente é chamada à administração escolar e instada a declarar que está “aberta à possibilidade de existirem várias respostas certas”, ao que a docente, indignada, alega que “isso não é verdade”. É, então, despedida. A questão chega aos media e o desnorte e desinformação sobre o episódio atingem o seu auge. Convocada a comparecer na escola para receber a indemnização pelo despedimento e, perante o testemunho dos jornalistas, prevenir situações futuras, o diretor entrega-lhe um cheque no valor de quatro mil dólares, correspondendo a dois mil dólares pelo pagamento do último ordenado, mais dois mil dólares de compensação. É então que a professora alega – deliciosa vingança – que a conta está errada e que a escola lhe deve, como ficou demonstrado pela acusação que lhe fizeram, vinte e dois mil dólares! Este pequeno filme tornou-se viral na internet e o seu lado anedótico e certamente exagerado, revela muitas das disfuncionalidades e distorções presentes nas nossas escolas e que as sociedades contemporâneas enfrentam quotidianamente.
Vivemos numa sociedade do desconhecimento? Nas palavras iniciais do seu estudo sobre a ignorância, a conclusão dos historiadores da ciência da Universidade de Stanford, Robert Proctor e Londa Schiebinger, deixa pouca margem para dúvidas: “We live in an age of ignorance” (Robert Proctor e Londa Schiebinger, Agnatology. The making and unmaking of ignorance, Stanford, California, SUP, 2008, p. VII), quer esta ignorância seja deliberadamente induzida (secretismo, censura ou destruição de informação), quer tenha uma raiz negligente (mecanismos de educação e divulgação deficitários), quer advenha de crenças e tradições inquestionadas ou de preconceitos infundados, quer seja produzida pela seletividade informativa. Em todo o caso, poucos estão dispostos a assumir que “Education is a progressive discovery of our own ignorance.” (ibid. p. 29), como disse o filósofo e historiador norte-americano Will Durant.
Mais do que isso, recusamo-nos a aprender, pondo em causa os sistemas periciais e as opiniões avalizadas ao nosso dispor. É pelo menos essa a convicção de Tom Nichols, professor de Relações Internacionais e Segurança na Universidade de Harvard, quando afirma que “Vivemos tempos perigosos. Nunca tantas pessoas tiveram tanto acesso a tanto conhecimento, sendo completamente resistentes a aprender seja o que for.” (Tom Nichols, A morte da competência, Lisboa, Quetzal, 2018, p. 19). Claro que este estado de coisas tem consequências. Como refere Nichols para o caso americano – mas que facilmente pode ser replicado à escala mundial – “Os Estados Unidos são hoje um país obcecado em venerar a sua própria ignorância.”, sendo que “o grande problema é que nos orgulhamos de não saber.”. E passa a explicar: “É uma nova Declaração da Independência: já não defendemos que estas verdades são evidentes, defendemos que todas as verdades são evidentes, mesmo as que não são verdadeiras. Tudo é passível de se conhecer e uma opinião sobre qualquer assunto vale tanto como outra qualquer.” (ibid., pp. 9-10), num processo em que os indivíduos passam de desinformados a mal informados, para se tornarem “agressivamente errados”.
Mas nem tudo é do âmbito da opinião, em especial daquela que não é informada; há coisas certas e erradas, e é inaceitável o postulado de que “a minha ignorância vale o mesmo que o teu conhecimento”, na certeira formulação de Isaac Asimov (Tom Nichols, op. cit., p. 17). A “ignorância convicta” e o questionamento sem dados comprovados, mas apenas a partir de crenças – a fezada do “achismo” – acerca do conhecimento científico e das ilações dos sistemas periciais, faz Nichols afirmar que “As pessoas não se limitam a acreditar em coisas parvas, mas resistem ativamente a aprender só para não terem de abdicar dessas crenças.” (ibid., p. 11). E as histórias que ouviu de médicos, advogados ou professores confirmam esta asserção: “Estas histórias surpreenderam-me: não eram sobre pacientes ou clientes que faziam perguntas sensatas, mas sobre esses mesmos pacientes e clientes a explicarem convictamente àqueles profissionais porque é que a opinião deles estava errada. Em todos estes casos, a ideia de que o perito sabia o que estava a fazer era praticamente rejeitada à partida.”, acrescentando, “Pior, aquilo que me choca particularmente hoje em dia não é que as pessoas descartem a competência, mas a frequência com que o fazem, em relação a assuntos tão diversos, e a raiva com que o fazem.” (ibid., p. 12). O académico norte-americano conclui: “Os americanos já não conseguem separar a frase «não tens razão» da frase «és estúpido». Discordar é o mesmo que desrespeitar. Corrigir o outro é o mesmo que insultá-lo. E não reconhecer todas as opiniões como igualmente dignas de consideração, por mais fantasiosas e ilógicas que sejam, equivale a ser-se intolerante.” (ibid., p. 46). Situação particularmente preocupante se tivermos em consideração que, segundo a National Science Foundatiom, um em cada cinco americanos considera que é o Sol que gira à volta da Terra; mas pior do que isso é que, quando confrontados com o erro, têm orgulho em reitera-lo (cf. ibid., p. 283). Assim estamos!
A verdade é que as nossas sociedades não conseguiriam funcionar sem que cada um de nós reconheça os limites do seu conhecimento e, em consequência, tenha que confiar no saber de outros, daqueles que tiveram a formação e o treino necessários ao exercício das funções que desempenham. A complexidade das questões com que nos defrontamos, a todos os níveis, obriga a uma interdependência permanente. Mas é esta circunstância que nem todos estão dispostos a assumir. E é essa sensação de crescente falta de autonomia individual que leva à assunção de posições tão extremadas quanto perigosas. Ao refletir sobre este fenómeno, o historiador e politólogo Richard Hofstadter, na sua obra Anti-intellectualism in american life (1963), constata que “a complexidade do mundo moderno reduziu paulatinamente as tarefas que o cidadão normal pode desempenhar sozinho com inteligência e competência”, dando-nos um exemplo muito claro desta situação: “No sonho original e populista da América, a omnicompetência do homem comum era fundamental e indispensável. […] Hoje, ele tem consciência de que nem sequer é capaz de fazer o pequeno-almoço sem a ajuda de aparelhos que lhe são, de certa forma, misteriosos e que lhe foram disponibilizados pela competência especializada. Quando se senta para tomar o pequeno-almoço e pega no jornal, lê sobre um leque vasto de assuntos e temas que, se for honesto consigo mesmo, terá de reconhecer que não tem competência para avaliar.” (Tom Nichols, op. cit., pp. 36-37).
Como o episódio com que iniciamos este texto amplamente demonstra, a “complexidade avassaladora” das sociedades modernas cria uma sensação de impotência que alimenta um ressentimento da população face à crescente dependência das aptidões dos especialistas. Tal hostilidade traduz-se na ideia errada e sumamente perversa de que todas as opiniões sobre qualquer assunto valem o mesmo. Mas, como é evidente, não valem! Trata-se, pelo contrário, de uma ameaça ao bem-estar de todos. Porque, mesmo reconhecendo que os especialistas podem, por vezes, errar, é uma sorte os leigos conseguirem acertar alguma vez. E isso faz toda a diferença. Para além da formação adequada e aquisição de uma serie de competências específicas, o perito dedica toda ou uma parte substancial da sua vida a trabalhar nas matérias em que é especialista, o que torna o seu saber necessariamente habilitado e exclusivo. Em quaisquer circunstâncias, o seu veredito é muito mais confiável do que o de um leigo.
Será esta, certamente, uma das raízes do fenómeno populista a que todos assistimos. Não é por acaso que o filósofo basco Daniel Innerarity começa o seu livro Uma teoria da democracia complexa, com a seguinte advertência: “A principal ameaça à democracia não é a violência nem a corrupção, ou a ineficiência, mas sim a simplicidade.” (Daniel Innerarity, Uma teoria da democracia complexa, Lisboa, Ideias de Ler, 2021, p. 13). A “rebelião contra a complexidade” de que fala o filósofo alemão Peter Sloterdijk, baseia-se no processo que Innerarity caracteriza desta forma: “A uniformidade, a simplificação e os antagonismos toscos exercem uma grande sedução sobre aqueles que não toleram a ambiguidade, a heterogeneidade e a plurissignificação do mundo, que são incapazes de reconhecer de maneira construtiva a conflitualidade social.” (ibid. pp. 13-14). E acrescenta: “As soluções simples costumam produzir uma descompressão momentânea da perplexidade e dos conflitos, mas acabam por piorar as coisas, no plano do conhecimento e da ação, diminuindo a nossa capacidade cognitiva e as nossas opções práticas.” (ibid., p. 17). Como disse o jornalista e crítico social norte-americano Henry Louis Mencken, “Por cada problema complexo existe uma resposta que é clara, simples e falsa.” (ibid., p. 59).
A complexidade decorre, antes de mais, do aprofundamento e especialização do conhecimento e da necessária diferenciação funcional das nossas sociedades. Assumir a incompletude do saber é uma atitude que parte do pressuposto certo de que a ciência é uma busca incessante – e, por isso, necessariamente imperfeita e provisória – de conhecimento. É uma atitude que nada tem a ver com a ignorância que, ao invés, é profundamente autossuficiente, ineficaz e intolerante. Neste contexto, um dos dilemas essenciais das nossas sociedades é a circunstância de dependermos do saber dos outros para a condução da vida de cada um, isto numa era de crescente indeterminação e incerteza, onde “quase tudo é possível, quase nada é previsível.”, nas palavras de Innerarity (op. cit., p. 359). Até porque, como sublinha o autor basco, “Os limites entre o saber e o não-saber não são inquestionáveis, nem evidentes, nem estáveis. Em muitos casos, o quanto se pode ainda saber, o que já não se pode saber ou o que nunca se saberá são questões em aberto.” (ibid. p. 67), ainda que só os que sabem se apercebam realmente deste problema. É a confiança nos outros que está aqui em jogo, em sociedades baseadas na ganância individual e crescentemente deslassadas pela exploração e desigualdade sociais. Mas, a não ser que concordemos com o ex-secretário de Estado norte-americano Henry Kissinger, quando este dizia que “Para ter a certeza absoluta de algo, é preciso saber tudo ou nada sobre o assunto” (Visão, 26/5/2022), não temos alternativa senão aproveitar o que de melhor os sistemas periciais nos podem proporcionar.
Numa crónica antiga no Público (24/6/2021), Miguel Esteves Cardoso fez um impressivo diagnóstico da situação que vivemos: “O ser humano gravita inexoravelmente para o artificioso, para o falso, para o adocicado. Somos fáceis de enganar, porque queremos ser enganados e não temos coragem de o admitir.” E conclui: “Que acontecerá aos nossos olhos depois de tantos anos a comer só açúcar?” Fica a pergunta.
Hugo Fernandez