Imaginem uma eleição decisiva para a governação de um país disputada entre Cotrim de Figueiredo e André Ventura. Não precisam imaginar; foi o que se passou em França no passado dia 24 de abril (uns dias antes, os húngaros tiveram que fazer uma escolha semelhante nas eleições legislativas que deram o 4º mandato a Viktor Orbán). E o principal problema não está nesta evidente falta de escolha, mas na ausência da esquerda. Pela segunda vez consecutiva, a esquerda esteve ausente da 2ª volta das eleições presidenciais francesas. Jean-Luc Mélenchon, com os seus quase 8 milhões de eleitores, mais os 3,5 milhões de outros candidatos de esquerda, representando cerca de 30% do eleitorado (Emmanuel Macron atingiu os 28% e Marine Le Pen quedou-se pelos 23%), perderam, mais uma vez, a oportunidade de juntarem as suas forças e impedirem aquilo que o historiador Manuel Loff designou como uma “escolha horrível” entre “o radicalismo neoliberal e o radicalismo fascista” (Público, 19/4/2022). Cita, a este propósito, o historiador e sociólogo francês Marcel Gauchet que, já em 2019, avisava que “se em 2022 tivermos uma segunda volta Macron/Le Pen, dir-nos-ão a mesma coisa que da última vez: ‘Cuidado, [Le Pen] é uma ameaça para a República’. E eu concordo plenamente. Mas estaremos a prevenirmo-nos contra uma ameaça potencial com um candidato que é uma ameaça comprovada para a República!” Como é possível que, num dos mais importantes e influentes países europeus, não haja uma alternativa de esquerda a disputar não só esta, mas todas as eleições?
Como se explica este autêntico eclipse da esquerda? Uma primeira tentativa de resposta está na sua fragmentação endémica. A outra, na sua incapacidade analítica e falta de clarividência sobre os reais problemas e anseios da população. Em 2017, o mandato de Emmanuel Macron iniciou-se com a eliminação do imposto de solidariedade sobre as grandes fortunas (ISF), a redução da carga fiscal sobre os lucros empresariais e uma “reforma” do Código de Trabalho altamente favorável ao patronato. De entre as dez medidas-chave que foram agora a escrutínio contam-se o adiamento da idade da reforma dos 62 para os 65 anos e a obrigação dos beneficiários do rendimento de solidariedade ativa (RSA) trabalharem mais quinze horas por semana, proporcionando às empresas uma mão-de-obra barata e a recusa do aumento dos salários em setores em que as ofertas de emprego têm dificuldade em ser preenchidas. Um autêntico bingo neoliberal que foi apresentado como “uma medida de justiça” (cf. Serge Halimi, “Eleições francesas sob impacto internacional”, Le Monde Diplomatique, ed. portuguesa, abril de 2022).
Acresce que, perante o regresso – e a previsível escalada – da inflação, não está prevista qualquer medida de apoio aos rendimentos dos mais desfavorecidos ou de mitigação do aumento do custo de vida, preservando, isso sim, as margens de lucro das empresas (ameaçadas pela redução da procura) e os dividendos dos respetivos acionistas, em especial daquelas que integram o índice bolsista CAC40 e que tiveram lucros históricos de 160 mil milhões de euros em 2021. Não é, aliás, por acaso que, em novembro de 2021, a revista britânica The Economist tenha publicado um artigo com o título provocatório “A França está a sair-se bem mas a sentir-se miserável” (Público 9/4/2022), destacando a melhoria geral da situação económica do país relativamente aos outros parceiros europeus (com um crescimento na ordem dos 7%), com menos desemprego e um aumento da produção no âmbito da estratégia governamental Made in France, bem como um acréscimo considerável dos lucros empresariais. Mas este desempenho só foi conseguido à custa de um aumento dos horários de trabalho, de uma forte contenção salarial, de um agravamento brutal do custo de vida e da degradação dos serviços de saúde e dos apoios sociais, situação que piorou com a pandemia e, mais agora, com os efeitos inflacionistas da guerra na Ucrânia, aspetos naturalmente omitidos na análise da publicação supracitada.
O dossier temático do Le Monde Diplomatique (ed. portuguesa) de janeiro de 2022 intitulado “Encruzilhadas da Esquerda”, sintetiza, desta forma, o problema: “O inverno atinge grande parte da esquerda na Europa. As novas formações críticas da social-democracia, como o Podemos em Espanha ou o Die Linke na Alemanha, estão hoje longe das esperanças que inicialmente suscitaram, enquanto o desaparecimento do Partido Comunista em Itália, em abril de 1991, deixou o campo progressista desorientado.”, concluindo, “Incapaz de escutar as aspirações populares e de beneficiar do descontentamento geral, a esquerda fecha-se muitas vezes num discurso em que o pathos compete com a frivolidade.” Trata-se de um diagnóstico impiedoso, mas certeiro.
Como aí é referido, em 2002, os sociais-democratas dirigiam 13 dos 15 governos da União Europeia; passados vinte anos, restam apenas 7 em 27 estados-membros (Alemanha, Finlândia, Suécia, Dinamarca, Espanha, Portugal e Malta). Semelhante colapso encontra uma explicação no paradoxo cruel enunciado em 2020 pelo velho senador socialista, Jean-Pierre Chevènement: “A globalização neoliberal, através da liberdade de circulação de bens, serviços, capitais e seres humanos, não está posta em causa pela esquerda, que em grande medida se uniu ao social-liberalismo, mas pela chamada direita «populista»”. E aqui reside parte substancial da tragédia da esquerda.
Comentando tal circunstância, Benoît Bréville e Serge Halimi explicam que “Para serem concretizados, os objetivos de transformação social têm de se apoiar num forte movimento das classes populares. Já ninguém ignora que a consciência dos fracassos de uma política, ou até da ilegitimidade de um sistema, não faz nascer automaticamente a vontade de os derrotar. Quando faltam instrumentos para o conseguir, a revolta ou a cólera cedem muitas vezes caminho ao desenrascanço, ao salve-se-quem-puder ou à convicção de que os direitos sociais do vizinho constituem privilégios.” (Le Monde Diplomatique, ed. portuguesa, janeiro de 2022). Esta disposição favorece, obviamente, a extrema-direita populista. Quando teve responsabilidades governamentais, a esquerda não falhou porque aplicou o seu programa; falhou porque alinhou com o programa dos seus adversários. E isso os povos não lhe perdoam. Ficou tristemente célebre a sentença do presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker quando, na sequência da vitória do Syriza nas eleições de 2015, advertiu os gregos que “Não pode haver uma escolha democrática contra os tratados europeus”. Perante este estado de coisas, advém uma sensação absoluta de impotência, indutora do desespero. A “despolitização” e abstenção crescentes de amplas camadas da população de que se fala, resulta certamente da constatação de que as alternativas estão bloqueadas, nada muda e nada se pode vir a ganhar no atual jogo político.
O perigo da esquerda se tornar insignificante reside essencialmente na sua incapacidade de ultrapassar dogmas e sectarismos totalmente irrelevantes para responder às atuais preocupações das pessoas. Como diz o ex-dirigente comunista Domingos Lopes, “A sociedade mudou. Não podemos repetir o que não tem sentido dadas as novas condições. A atualidade de Marx é, em muitos aspetos, muito mais rica do que a de muitos dos seus intérpretes, que lhe transformaram o pensamento em mandamento, em texto sagrado, algo totalmente contrário ao espírito do filósofo da práxis.”, concluindo que “o passado é apenas um ponto de referência para perscrutar o futuro.” (Domingos Lopes, 100 anos do PCP. Resgatar e reconfigurar o ideal comunista, Lisboa, Guerra & Paz, 2022, p. 33).
Fica a ingente questão colocada pelo jornalista Rui Guedes, diretor-executivo da revista Visão, a propósito das eleições francesas: “O que raio terá acontecido à democracia quando nos resignamos, sem sobressalto, à hipótese de ela desaparecer?” (Visão, 21/4/2022).
Hugo Fernandez