Albardas e Alforges... nunca vi nada assim! Minto... já vi!
Domingo, 17 de Abril de 2022
Atualidades - velhas e novas "coisas" do mundo

Estudos Globais

Falar do altermundismo do altercapitalismo, da crise do capitalismo, da crise da democracia, da desorientação da esquerda, da recomposição dos totalitarismos através da pressão dos nacionalismos, falar disto tudo, é falar de erros das democracias, dos sistemas políticos e dos seus dirigentes. Tema introdutório apresentado no seminário do doutoramento de Estudos Globais da UAb.

Como sabemos o Fórum Social Mundial (FSM), no seus primeiros anos (início em 2001 em Porto Alegre - Brasil) foi o principal território no compartilhar da experiência das esquerdas e dos movimentos pela transformação social. Mais do que um espaço para multiplicar iniciativas e redes militantes, significou uma política da composição e de partilha, uma estratégia organizacional mais aberta, afirmativa, transnacional, com múltiplos sentidos e objetivos: médias, internet, minorias, luta pela terra, cultura, políticas urbanas (cidades e territórios mais sustentáveis), — bem no espírito do movimento da participação cidadã e também pela defesa dos direitos das minorias autóctones da América. Desde a primeira edição, o FSM foi objeto de muitas críticas, internas e externas.

O altermundismo estaria enquadrado e “capturado” por instâncias representativas tradicionais, rapidamente cooptado por governos e líderes. Estaria também hegemonizado por uma esquerda moderada, que não fez jus à contestação sistémica, manifestada pelas lutas dos anos 1990. Foi ainda infestado pela febre das ONGs, que capturaram os movimentos populares, para comodamente se instalarem como entidades da sociedade civil em parceria com os estados. Estaria ainda rendido à ideia de um capitalismo mais humano e sustentável: a ideologia por excelência das classes médias ilustradas, liberais e “terapeutizadas” (a dita conversa dos afetos…). Em suma, seria anticapitalista mas pelo lado “fofinho” . Não soube, não se preocupou e não lhe interessou em traçar a linha entre o dentro e o fora, e acabou engolido no lamaçal geral das próprias concessões e ambiguidades. Em parte, essas críticas até têm razão de ser. Já em 1996, no “pós-Glasnost”, os movimentos que pugnavam por uma “nova esquerda” diagnosticavam a importância de abrir as práticas, contra qualquer esboço de esquerdismo ou isolacionismo, de militantes nostálgicos de outros tempos históricos. Viúvas de Seattle (as manifestações contra o encontro da OMC de novembro de 1999) e Génova (manifestações contra a reunião do G8 em Génova, julho de 2001) lamentam o “adesismo”, a subserviência e a impudência de novas alianças e composições políticas. Declaram-se extrema-esquerda, que é outra forma de dizer-se mais esquerda do que os outros. Munidos de “esquerdómetro”, passam a monopolizar o parâmetro de julgamento para separar o joio do trigo. Esse julgamento com fundo moral e em tom de denúncia, professado como compromisso mais puro e convicto do que os demais, passa então a infiltrar-se nas atividades e posturas mais quotidianas dos coletivos esquerdistas, infetando tudo de uma moralidade que é insuportável a longo prazo. Uma fração do que hoje se denomina luta anticapitalista está permeada dessa cultura política negativa e sectária, cuja impotência se reflete na incapacidade de agregar bases sociais minimamente significativas.

Noutra medida, contudo, essas críticas ao altermundismo têm a sua razão de ser. Porque a abertura do FSM também deixou a porta aberta para a diluição da revolta, da recusa e do poder constituinte por formas neutralizadas, ou mediante a captura pura e simples pelo espírito do capitalismo. Isso desde a primeira edição. Ao longo dos anos 2000, aconteceu, de facto, um movimento de “adoçamento” generalizado. A geração descafeinada (a geração descafeinada é a do tempo presente que perdeu o estímulo pelas coisas importantes na vida e por esta razão vive na dependência de quem a estimule) dos anos 2000 toma o lugar da geração revoltada dos 1990. Com a domesticação, o discurso radical ganha um duplo mutilado, um gémeo esmorecido, sem a mesma verve. Assim, o ambientalismo é reduzido ao ecologismo verde; a desigualdade social reduzida à sustentabilidade e assistência; a opressão de raça e género, ao culto da diversidade e ao politicamente correto; a falência da lógica representativa, a um problema de gestão e profissionalismo. Enquanto isso, a corrupção institucionalizada e sistémica tornar-se-à uma questão individual e moral; e a democracia, uma questão de procedimentos e transparência; os novas médias, de capacitação jornalística e blogosfera progressista; a cultura livre, de novos modelos de negócios; e a revolução digital desregulada está a caminhar para uma nova profecia redentora que unificará a humanidade pela própria força utópica além da luta de classe. Militância torna-se uma palavra pesada e é substituída por ativismo. O campo das esquerdas é capturado por missionários deste neo-ativismo de classe média, entre verdes, gente das ONGs (os ditos ongueiros), humanistas liberais e o bom e velho gestor capitalista autossustentável. É o Zeitgeist do altercapitalismo: responsabilidade social, consciência planetária e sacos de plástico tornam-se palavras-de-ordem no melhor interesse geral… do capitalismo. Starts with you! Se alguns anticapitalistas falham em considerar como processos de transformação não se dão simplesmente porque queremos, mas em virtude de forças políticas sobre os quais eles se apoiam; os altercapitalistas exprimem forças e direcionam esses processos exatamente no sentido de uma reestruturação conservadora da ordem capitalista.

A par das vacinas antiCovid, talvez uma vacina antropofágica, nome poético para a urgentemente necessária esquizoanálise altermundialista da cultura em que vivemos. O próprio sistema capitalista já tomou consciência da necessidade de reestruturar-se e reinventar-se: ser outro. Desde 2008 até estes tempos atuais, em que um Estado de oligarcas declara e invade um país, uma nação….na maior crise sistémica desde a quebra da Bolsa de 1929 e consequente segunda guerra mundial, os seus pensadores, dirigentes e consultores têm esforçado por trabalhar por algo como um novo New Deal. Afrontado com um ciclo de lutas potentíssimo e sem conclusão à vista, o altercapitalismo está na ordem do dia no seio do próprio establishment. Eles sabem que as coisas não serão como antes, então é preciso adaptar-se, ceder os anéis para não perder os dedos, e contemplar novos territórios de exploração e acumulação, agora mais intensiva e horizontal. O capitalista sabe como nunca que precisa empreender criativamente. Nesse contexto, em 2022, subsiste uma convergência geral no discurso de sustentabilidade, da gestão, do desenvolvimento humano, da responsabilidade social, do empreendedorismo criativo e da consciência global.

Se certo anticapitalismo não é alternativa, à altura do horizonte de lutas em 2022; por outro lado, o altermundismo parece estar encerrado como processo constituinte, esgotado das suas polivalências e (algumas) brechas constituintes — e não é à toa que alguns já falam em pós-altermundismo. Outro nome para o novo capitalismo? Para onde vamos? O tempo é de perplexidade. As lutas globais de 2011-14 (tempos da troika) certamente não se perderam. Existem vetores de transformação por dentro dessa bifurcação? O facto é que será necessário voltar a pensar, às cartografias sociais e urbanas, à antropologia dos movimentos, na imanência das lutas. È imperativo e necessário derrapar pela tangente das grandes sínteses e fazer postular as feridas de um discurso cada vez mais asséptico, neutralizado. A invocação de convergências e consensos deve ser respondida com a agressividade teórica e prática. Uma nova imanência e um novo materialismo, eis aí o desafio da geração que ainda pulsa. Que isto inspire o apoio convergente de nacionalistas, neofascistas e comunistas em diversos países do mundo mostra bem a crise de civilização em que vivemos.

Albardeiro



publicado por albardeiro às 14:05
link do post | comentar | favorito

pesquisar
 
Dezembro 2024
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3
4
5
6
7

8
9
10
11
12
13
14

15
16
17
18
19
20
21

22
23
24
25
26
27
28

29
30
31


posts recentes

RESSACA

Quando acordei, a cultura...

LIDERAR ESTUDOS GLOBAIS: ...

Relações Luso-Nipónicas –...

INTERROGAÇÕES

A transformação digital n...

Carta Aberta ao universo ...

FACES DA DESIGUALDADE

A COMPARAÇÃO

A FUSÃO

arquivos

Dezembro 2024

Novembro 2024

Outubro 2024

Setembro 2024

Agosto 2024

Junho 2024

Maio 2024

Março 2024

Fevereiro 2024

Janeiro 2024

Outubro 2023

Julho 2023

Junho 2023

Abril 2023

Março 2023

Fevereiro 2023

Dezembro 2022

Novembro 2022

Outubro 2022

Setembro 2022

Junho 2022

Maio 2022

Abril 2022

Março 2022

Janeiro 2022

Dezembro 2021

Novembro 2021

Outubro 2021

Agosto 2021

Julho 2021

Junho 2021

Abril 2021

Março 2021

Fevereiro 2021

Janeiro 2021

Dezembro 2020

Outubro 2020

Julho 2020

Junho 2020

Abril 2020

Fevereiro 2020

Janeiro 2020

Novembro 2019

Outubro 2019

Setembro 2019

Junho 2019

Maio 2019

Abril 2019

Março 2019

Janeiro 2019

Novembro 2018

Setembro 2018

Julho 2018

Maio 2018

Abril 2018

Fevereiro 2018

Janeiro 2018

Dezembro 2017

Novembro 2017

Outubro 2017

Setembro 2017

Julho 2017

Junho 2017

Maio 2017

Abril 2017

Março 2017

Fevereiro 2017

Janeiro 2017

Dezembro 2016

Novembro 2016

Outubro 2016

Setembro 2016

Agosto 2016

Julho 2016

Junho 2016

Maio 2016

Abril 2016

Março 2016

Janeiro 2016

Novembro 2015

Outubro 2015

Setembro 2015

Agosto 2015

Julho 2015

Maio 2015

Abril 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Abril 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Setembro 2008

Julho 2008

Junho 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Julho 2007

Junho 2007

Maio 2007

Abril 2007

Fevereiro 2007

Janeiro 2007

Novembro 2006

Outubro 2006

Setembro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

Junho 2006

Maio 2006

Abril 2006

Março 2006

Fevereiro 2006

Janeiro 2006

Dezembro 2005

Novembro 2005

Outubro 2005

Setembro 2005

Julho 2005

Junho 2005

Maio 2005

Abril 2005

Março 2005

Fevereiro 2005

Janeiro 2005

Dezembro 2004

Novembro 2004

Outubro 2004

Setembro 2004

Agosto 2004

Julho 2004

Junho 2004

Maio 2004

Abril 2004

Março 2004

blogs SAPO
subscrever feeds
Em destaque no SAPO Blogs
pub