Estudos Globais
Falar do altermundismo do altercapitalismo, da crise do capitalismo, da crise da democracia, da desorientação da esquerda, da recomposição dos totalitarismos através da pressão dos nacionalismos, falar disto tudo, é falar de erros das democracias, dos sistemas políticos e dos seus dirigentes. Tema introdutório apresentado no seminário do doutoramento de Estudos Globais da UAb.
Como sabemos o Fórum Social Mundial (FSM), no seus primeiros anos (início em 2001 em Porto Alegre - Brasil) foi o principal território no compartilhar da experiência das esquerdas e dos movimentos pela transformação social. Mais do que um espaço para multiplicar iniciativas e redes militantes, significou uma política da composição e de partilha, uma estratégia organizacional mais aberta, afirmativa, transnacional, com múltiplos sentidos e objetivos: médias, internet, minorias, luta pela terra, cultura, políticas urbanas (cidades e territórios mais sustentáveis), — bem no espírito do movimento da participação cidadã e também pela defesa dos direitos das minorias autóctones da América. Desde a primeira edição, o FSM foi objeto de muitas críticas, internas e externas.
O altermundismo estaria enquadrado e “capturado” por instâncias representativas tradicionais, rapidamente cooptado por governos e líderes. Estaria também hegemonizado por uma esquerda moderada, que não fez jus à contestação sistémica, manifestada pelas lutas dos anos 1990. Foi ainda infestado pela febre das ONGs, que capturaram os movimentos populares, para comodamente se instalarem como entidades da sociedade civil em parceria com os estados. Estaria ainda rendido à ideia de um capitalismo mais humano e sustentável: a ideologia por excelência das classes médias ilustradas, liberais e “terapeutizadas” (a dita conversa dos afetos…). Em suma, seria anticapitalista mas pelo lado “fofinho” . Não soube, não se preocupou e não lhe interessou em traçar a linha entre o dentro e o fora, e acabou engolido no lamaçal geral das próprias concessões e ambiguidades. Em parte, essas críticas até têm razão de ser. Já em 1996, no “pós-Glasnost”, os movimentos que pugnavam por uma “nova esquerda” diagnosticavam a importância de abrir as práticas, contra qualquer esboço de esquerdismo ou isolacionismo, de militantes nostálgicos de outros tempos históricos. Viúvas de Seattle (as manifestações contra o encontro da OMC de novembro de 1999) e Génova (manifestações contra a reunião do G8 em Génova, julho de 2001) lamentam o “adesismo”, a subserviência e a impudência de novas alianças e composições políticas. Declaram-se extrema-esquerda, que é outra forma de dizer-se mais esquerda do que os outros. Munidos de “esquerdómetro”, passam a monopolizar o parâmetro de julgamento para separar o joio do trigo. Esse julgamento com fundo moral e em tom de denúncia, professado como compromisso mais puro e convicto do que os demais, passa então a infiltrar-se nas atividades e posturas mais quotidianas dos coletivos esquerdistas, infetando tudo de uma moralidade que é insuportável a longo prazo. Uma fração do que hoje se denomina luta anticapitalista está permeada dessa cultura política negativa e sectária, cuja impotência se reflete na incapacidade de agregar bases sociais minimamente significativas.
Noutra medida, contudo, essas críticas ao altermundismo têm a sua razão de ser. Porque a abertura do FSM também deixou a porta aberta para a diluição da revolta, da recusa e do poder constituinte por formas neutralizadas, ou mediante a captura pura e simples pelo espírito do capitalismo. Isso desde a primeira edição. Ao longo dos anos 2000, aconteceu, de facto, um movimento de “adoçamento” generalizado. A geração descafeinada (a geração descafeinada é a do tempo presente que perdeu o estímulo pelas coisas importantes na vida e por esta razão vive na dependência de quem a estimule) dos anos 2000 toma o lugar da geração revoltada dos 1990. Com a domesticação, o discurso radical ganha um duplo mutilado, um gémeo esmorecido, sem a mesma verve. Assim, o ambientalismo é reduzido ao ecologismo verde; a desigualdade social reduzida à sustentabilidade e assistência; a opressão de raça e género, ao culto da diversidade e ao politicamente correto; a falência da lógica representativa, a um problema de gestão e profissionalismo. Enquanto isso, a corrupção institucionalizada e sistémica tornar-se-à uma questão individual e moral; e a democracia, uma questão de procedimentos e transparência; os novas médias, de capacitação jornalística e blogosfera progressista; a cultura livre, de novos modelos de negócios; e a revolução digital desregulada está a caminhar para uma nova profecia redentora que unificará a humanidade pela própria força utópica além da luta de classe. Militância torna-se uma palavra pesada e é substituída por ativismo. O campo das esquerdas é capturado por missionários deste neo-ativismo de classe média, entre verdes, gente das ONGs (os ditos ongueiros), humanistas liberais e o bom e velho gestor capitalista autossustentável. É o Zeitgeist do altercapitalismo: responsabilidade social, consciência planetária e sacos de plástico tornam-se palavras-de-ordem no melhor interesse geral… do capitalismo. Starts with you! Se alguns anticapitalistas falham em considerar como processos de transformação não se dão simplesmente porque queremos, mas em virtude de forças políticas sobre os quais eles se apoiam; os altercapitalistas exprimem forças e direcionam esses processos exatamente no sentido de uma reestruturação conservadora da ordem capitalista.
A par das vacinas antiCovid, talvez uma vacina antropofágica, nome poético para a urgentemente necessária esquizoanálise altermundialista da cultura em que vivemos. O próprio sistema capitalista já tomou consciência da necessidade de reestruturar-se e reinventar-se: ser outro. Desde 2008 até estes tempos atuais, em que um Estado de oligarcas declara e invade um país, uma nação….na maior crise sistémica desde a quebra da Bolsa de 1929 e consequente segunda guerra mundial, os seus pensadores, dirigentes e consultores têm esforçado por trabalhar por algo como um novo New Deal. Afrontado com um ciclo de lutas potentíssimo e sem conclusão à vista, o altercapitalismo está na ordem do dia no seio do próprio establishment. Eles sabem que as coisas não serão como antes, então é preciso adaptar-se, ceder os anéis para não perder os dedos, e contemplar novos territórios de exploração e acumulação, agora mais intensiva e horizontal. O capitalista sabe como nunca que precisa empreender criativamente. Nesse contexto, em 2022, subsiste uma convergência geral no discurso de sustentabilidade, da gestão, do desenvolvimento humano, da responsabilidade social, do empreendedorismo criativo e da consciência global.
Se certo anticapitalismo não é alternativa, à altura do horizonte de lutas em 2022; por outro lado, o altermundismo parece estar encerrado como processo constituinte, esgotado das suas polivalências e (algumas) brechas constituintes — e não é à toa que alguns já falam em pós-altermundismo. Outro nome para o novo capitalismo? Para onde vamos? O tempo é de perplexidade. As lutas globais de 2011-14 (tempos da troika) certamente não se perderam. Existem vetores de transformação por dentro dessa bifurcação? O facto é que será necessário voltar a pensar, às cartografias sociais e urbanas, à antropologia dos movimentos, na imanência das lutas. È imperativo e necessário derrapar pela tangente das grandes sínteses e fazer postular as feridas de um discurso cada vez mais asséptico, neutralizado. A invocação de convergências e consensos deve ser respondida com a agressividade teórica e prática. Uma nova imanência e um novo materialismo, eis aí o desafio da geração que ainda pulsa. Que isto inspire o apoio convergente de nacionalistas, neofascistas e comunistas em diversos países do mundo mostra bem a crise de civilização em que vivemos.
Albardeiro