No Afeganistão, 45 milhas (cerca de 72 quilómetros) marca, a partir de agora, uma nova fronteira da indignidade. Desde o passado dia 26 de dezembro, os taliban anunciaram que as mulheres têm de ser acompanhadas por um parente do sexo masculino para realizarem viagens de longa distância, recomendando aos motoristas dos transportes coletivos que apenas aceitem passageiras portadoras de véu islâmico. Tal absurdo, emanado de um autointitulado “Ministério para a Promoção da Virtude e da Prevenção do Vício” – designação sinistra para a atuação de um poder totalitário – vem demonstrar, mais uma vez, aquilo que era já uma certeza: a barbárie que se abateu sobre o Afeganistão com a chegada dos taliban ao poder, em agosto deste ano, “vai tornar as mulheres afegãs prisioneiras”, conforme denunciou Heather Barr, da organização não-governamental Human Rights Watch (Público, 27/12/2021).
Porque é de direitos humanos que se trata; nada mais. E tal como é inconcebível, nos nossos dias, que um ser humano seja propriedade de outro, como acontecia com a escravatura no mundo antigo, é igualmente intolerável que a metade feminina da população afegã seja considerada inferior, desprovida de direitos, de razão e de vontade, a ponto de ter que se sujeitar a uma tutela masculina, tão aviltante para as mulheres como vergonhosa para os próprios homens. Infelizmente não é caso único. Mas não pode deixar de ser considerada uma aberração e de merecer a mais firme condenação da Humanidade.
Uma das principais conquistas da modernidade é a perceção da evolução das sociedades e a noção clara de que não se pode parar o tempo histórico. Não é possível reviver o século VII em pleno século XXI. Claro que, filosoficamente, os direitos humanos são contingentes à própria historicidade, mas a força da sua facticidade decorre da aprovação universal dos seus postulados e do reconhecimento formal da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (1948), por países de todas as proveniências e tradições culturais, incluindo o Afeganistão. Nas palavras do filósofo germânico Jürgen Habermas, “los derechos humanos provienen menos del transfondo cultural particular de la civilización occidental que del intento de responder a desafios específicos planteados por una modernidade social que ha acabado por abarcar todo el globo” (cit. in Perry Anderson, Spectrum, Madrid, Akal, 2008, p. 168).
Aliás, como bem lembra Rui Tavares a propósito da génese deste documento (Público, 27/8/21), foram as delegadas indiana, Hansa Mehta, e brasileira, Bertha Lutz, que propuseram, logo nas primeiras sessões da Comissão da ONU encarregue da sua elaboração, a denominação mais inclusiva de “Direitos Humanos”, em vez de “Direitos do Homem” (como anteriores documentos históricos europeus consignavam). Foram também os representantes filipino, Carlos Romulo, o chinês PC Chang e o libanês Charles Malik, que mais defenderam o caráter universal dos seus postulados. Nenhum deles era ocidental.
Há um velho provérbio afegão que diz: “Vocês têm relógios, mas nós temos tempo”. Mas, como justamente lembrou o nosso compatriota Padre António Vieira já nos idos de seiscentos, “Não há poder maior no mundo que o do tempo: tudo sujeita, tudo muda, tudo acaba”. Que realidade é esta que irrompeu no Afeganistão? Certamente não falamos de espiritualidade devota, mas da ditadura de uma súcia de tiranos que a coberto da legitimação religiosa asseguram uma autoridade discricionária e absoluta. A isso costuma chamar-se fascismo!
Hugo Fernandez