Poucas coisas são mais irritantes no nosso quotidiano do que alguém que dá o golpe numa fila ou que ostensivamente nos passa à frente sem razão para tal. “Quem é que pensas que és?” é, normalmente (e numa versão civilizada!) a interpelação ouvida. De igual modo, constitui um dado empírico incontestado que é de muito mau gosto alguém perguntar sobranceiramente a outro “e tu, quem és?”, sobretudo se esse alguém ocupa uma posição social mais vantajosa do que aquele a quem se dirige. Marcar as diferenças é considerado, de uma maneira geral, uma atitude socialmente ofensiva e, por isso, amplamente, reprovada. Há razões históricas que explicam tal atitude. Quando, há cerca de duzentos anos, as revoluções liberais puseram fim ao Antigo Regime e se basearam na igual consideração social dos cidadãos e na igualdade de direitos e deveres cívicos, plasmada no reconhecimento normativo de que “a lei é igual para todos” (conforme consta, por exemplo, no art.º 9º da Constituição Política da Monarquia Portuguesa de 1822, a nossa primeira constituição e texto fundador da ordem liberal em terras lusas), instaurava-se uma matriz de poder e de organização da sociedade radicalmente distinta da de antanho.
Ora, esta atitude, que de tão enraizada já entrou, nos dias que correm, no domínio do senso comum, ainda se confronta com resistência atávicas que persistem em nos surpreender. Ficou famosa, no início de setembro, a cena de pesporrência e insuportável abuso de autoridade por parte do ex-juiz Rui Fonseca e Castro (justamente expulso da magistratura uns dias mais tarde), perante uma força policial destacada para controlar a multidão truculenta dos seus apoiantes, desafiadores da ordem pública, à entrada para a audiência no Conselho Superior da Magistratura para ajuizar da sua conduta no exercício das funções forenses. O diálogo então entabulado tem tanto de escandaloso como de simbólico. Dirigindo-se ao comandante da referida força, invetivava o juiz, “Ponha-se no seu lugar; eu sou a autoridade judiciária aqui”, ao que o oficial da polícia respondeu, com o poder que a lei lhe conferia e com uma calma verdadeiramente seráfica, “E o senhor ponha-se no seu lugar”, ao que o juiz retorquiu, irado, “O meu lugar é este: acima de si, acima de si! Tá [sic] a perceber? O senhor tá abaixo de mim, portanto o senhor não vai tocar em ninguém.”
Para além do delicioso – e elucidativo! – pormenor do tá com que se dirigiu ao comandante policial, Fonseca e Castro parece ainda não ter percebido que as hierarquias funcionais não podem justificar desconsiderações de tratamento, nem diferenciação de estatutos cívicos – o invocar estar acima ou abaixo de alguém, ainda para mais no desempenho legítimo de uma ação pública, é coisa que, felizmente, não é admissível. Neste caso, nem hierarquia funcional havia, já que a força policial presente estava destacada no exercício de funções oficiais e ao abrigo das determinações do Estado de direito no respeito pela lei e manutenção da ordem pública (decorrentes, precisamente, da defesa da liberdade de manifestação, por exemplo, na necessária solicitação da licença para o efeito, que não existiu), circunstâncias que qualquer juiz a sério imediatamente sancionaria.
Não resisto a contar duas outras situações relacionadas com a assimilação dos princípios básicos de cidadania. Uma pertence ao anedotário da Revolução Francesa. A outra é verdadeira e passou-se nos anos 80 do século passado, nos EUA. Ainda hoje, em França, se contam as desventuras do Marquês de Saint-Cyr durante a Revolução Francesa. Sendo interpelado na rua por uma patrulha de revolucionários que lhe pedem a identificação, este responde “Marquês de Saint-Cyr”, ao que os guardas contestam “Já não há marqueses!”. O primeiro emenda, então, o seu nome para “Saint-Cyr”, ao que os revolucionários respondem “Já não há santos!” Por fim, o interpelado diz “Cyr”, ao que o grupo de interpelantes, confundindo o nome com a designação inglesa da aristocracia, afirmam “Já não há sire’s”. Desconcertado, o marquês responde então. “Deixem-me V. Senhorias seguir, já que ninguém sou.” (cf. Paulo Ferreira da Cunha, Constituição, Direito e Utopia, Coimbra, Coimbra Editores, 1996, p. 401).
Conta-nos Miguel Esteves Cardoso, a partir do relato do próprio Al Gore, que, em 1987, os senadores Al Gore e Bill Bradley estavam num banquete onde este último ia fazer o discurso de honra. “Vendo que um empregado estava a distribuir doses de manteiga, Bradley pediu-lhe mais uma. O empregado respondeu: «Desculpe, mas é uma dose de manteiga por pessoa.» «Mas eu preferia ter duas, se não se importa», disse Bradley. O empregado, taxativo, insistiu: «Lamento, mas é só uma dose por pessoa.» Aí, Bradley mudou de estratégia: «Se calhar, não está a ver quem eu sou: sou Bill Bradley, fui jogador profissional de basquete, fui campeão mundial e agora sou senador do estado de New Jersey.» O empregado: «Se calhar, o senhor também não sabe quem eu sou.» Bradley mostrou-se interessado: «Pois não, não estou a ver – quem é o senhor?» E o empregado respondeu, «Sou o gajo que manda na manteiga».” (Público, 9/10/2021).
Apetece dizer como o humorista brasileiro Millôr Fernandes: “Se todos os homens recebessem exatamente o que merecem, ia sobrar muito dinheiro no mundo”!
Hugo Fernandez