Do conclave do MEL (Movimento Europa e Liberdade), reunido recentemente em Lisboa, ressalta um único tema: a liberdade. Mas de que liberdade se trata? A liberdade estritamente privada, aquela que opõe o indivíduo ao Estado ou a qualquer constrangimento coletivo, a liberdade que nasce da “atomização social pelo ideal da concorrência de egoísmos, sobretudo entre os que estão ou aspiram a estar no topo da pirâmide social.”, nas palavras do economista João Rodrigues (“A liberdade a sério está para além do liberalismo”, Le Monde Diplomatique, ed. portuguesa, abril 2021). No fundo, a lógica de uma liberdade antissocial. A preocupação com a defesa à outrance deste individualismo – baseado na ideia matricial da posse (e daí o conhecido epíteto que lhe deu o sociólogo canadiano, Crawford Macpherson, de “individualismo possessivo”) – enviesa qualquer visão minimamente realista da sociedade e dos seus problemas, assentando na rejeição de uma alegada ditadura do politicamente correto (que supostamente seria apanágio da esquerda) e a efabulação, tão lapidarmente enunciada pela inefável neocon Maria de Fátima Bonifácio, de que “a liberdade e, portanto, a cidadania, está ameaçada pela omnipotência de um socialismo que arrebatou o poder e a partir do poder, quais gangsters em luta entre si, monopoliza a opinião publicada e esmaga a liberdade pública e privada.” (Público, 4/5/2021). De que é que esta senhora está a falar?
A 3ª Convenção do MEL (depois de anteriores edições em 2019 e 2020), que reuniu representantes da direita e da extrema-direita lusa e que tinha como objetivos a “construção de um horizonte de futuro para Portugal e a dignificação da imagem política na sociedade portuguesa”, quedou-se por um chorrilho de disparates e de teorias da conspiração, um arrazoado de delírios negacionistas e de mistificações populistas sob o pano de fundo, nunca abertamente declarado, da litania neoliberal da privatização total da economia, da máxima exploração laboral e da precarização da mão-de-obra, do desmantelamento do Estado social e da simplificação do sistema fiscal – leia-se o fim da progressividade fiscal e a redução de impostos para os mais ricos – e a reativação da famigerada e arcaica (tão antiga quanto o espírito fatalista e providencialista próprio do Ancien Régime, isto é, de tempos pré-liberais!) TINA, “there is no alternative”. Receita velha e conhecida, portanto.
Na reunião do MEL, as dificuldades e problemas reais do país, desde a desigualdade crescente, a pobreza e exclusão social, a degradação ambiental, a corrupção e a evasão fiscal, o subfinanciamento e consequente deterioração dos serviços públicos e da Segurança Social ou as sequelas pandémicas, estiveram olimpicamente ausentes. É significativo que assim seja. O alvo sempre foi – e sempre será – a esquerda e os valores que ela representa. Susana Garcia, candidata de extrema-direita pelo PSD ao município da Amadora nas próximas eleições autárquicas verbalizou, de forma absolutamente liminar, os propósitos desta ala política: “exterminar a esquerda”. O seu correligionário de extrema-direita, mas, desta vez, pelo Chega, declarou, no recente congresso deste partido, que, se fosse governo, iria “prender os dirigentes de esquerda”. Mas, junto com a esquerda, não será a própria democracia que acabará por ficar aprisionada? É sabido que a extrema-direita, ao longo da história, se serviu sempre da democracia para a destruir. E, como justamente denuncia o deputado pelo BE, José Manuel Pureza, “Neste tempo em que a democracia e o Estado de direito se tornaram empecilhos descartáveis para os navegadores à bolina da finança, em que o desdém das regras básicas da responsabilidade para com a representação popular assumiu expressões pornográficas – os «depoimentos» de Berardo, Vieira, Vasconcellos ou Moniz da Maia na comissão de inquérito ao Novo Banco são isso mesmo –, a extrema-direita passou a ser o seu rosto político.” (Visão, 27/5/21).
Em Espanha, também o PP e a sua candidata e recém-eleita presidente da Comunidade de Madrid, Isabel Díaz Ayuso, proclamou a “liberdade” contra o “socialismo e o comunismo”. O seu lema de campanha para as eleições de 4 de maio foi “Comunismo ou Liberdade”, utilizando as medidas restritivas de combate à pandemia de Covid-19 como arma política, ao desafiar o confinamento estabelecido a nível nacional pelo Governo do PSOE/Podemos e, por exemplo, manter bares e restaurantes abertos na capital espanhola, ao mesmo tempo que desvalorizava o facto de Madrid ser um dos três grandes focos de pandemia em Espanha e escamoteava a quase nulidade das suas políticas sociais. Como declarou Isabel Ayuso, “Quando te chamam fascista, estás do lado certo”, na sequência do envio de cartas com ameaças de morte (balas e uma navalha ensanguentada) a vários dirigentes políticos e governativos de esquerda. É este o exemplo que a direita portuguesa parece querer seguir.
A aparente popularidade destas posições políticas radica na subtil distinção, sublinhada por Boaventura de Sousa Santos, entre “participação” e “pertença”. Para este sociólogo coimbrão, a extrema-direita promove uma “lógica de pertença, seja ela nacionalista ou racista, contra a lógica de participação que é própria da democracia.” (Público, 22/5/21) E passa a explicar: “A diferença é radical e, por isso, invisível. Participamos numa realidade contribuindo para a construir, enquanto pertencemos a uma realidade já plenamente construída (nação, raça, etnia, casta), seja a construção real ou inventada. A pertença confere uma segurança a quem pertence na mesma proporção em que exclui quem a ela não pertence. Em períodos de crise, esta segurança é preciosa.” Boaventura conclui: “As escolhas em que assentam a participação e a pertença são muito diferentes. Na participação escolhe-se entre; na pertença escolhe-se contra.” Ora é precisamente o aprofundamento das desigualdades e a falência do Estado social – e não qualquer imaginada crise do “individualismo possessivo” – que alimenta o rancor extremista. Como sentencia de forma exemplar José Manuel Pureza, “A extrema-direita anima o povo zangado para evitar mostrar que é aliada de quem castiga o povo sofrido.”
Hugo Fernandez