Numa crónica anterior falei do conceito de agnatologia, termo usado pela primeira vez em 2008 pelo historiador norte-americano Robert Proctor, professor da Universidade de Stanford, para designar a “ciência da ignorância”, isto é, a ignorância não como mera ausência de conhecimento, mas como o resultado de um processo de “produção cultural de ignorância” induzido por um determinado projeto de poder e de organização da sociedade. Como explica a professora e investigadora do Instituto de Comunicações da Universidade Nova, Carla Baptista, que cita o académico estadunidense, “A produção cultural de ignorância utiliza duas estratégias discursivas: exponenciar a dúvida (os dados são manipulados para criar desconfiança sistémica) e promover a controvérsia (fabricar inimigos).” (Carla Baptista, “Os 3D das presidenciais: desigualdade, desinformação e demagogia”, Le Monde Diplomatique, ed. port., fevereiro de 2021).
A presente problemática da vacinação contra o Covid-19 é sintomática deste fenómeno. O conhecido bioquímico e escritor de ficção científica norte-americano Isaac Asimov disse, um dia, que “o aspeto mais triste da vida atual é que a ciência ganha conhecimento mais rapidamente que a sociedade em sabedoria”. Com efeito, a generalização do sapere aude kantiano está, ainda hoje, por cumprir. Ainda para mais quando os movimentos negacionistas que por aí pululam se reclamam, de forma tão lapidar quanto irrazoável (para não dizer, tão mistificadora quanto nociva), detentores da “verdade”. Teremos assim os arautos de uma sapiência revelada – os negacionistas – contra o rigor e precisão da investigação e conhecimento científicos, a oposição entre aqueles que denunciam a suposta instauração de uma “ditadura cientista” e que vislumbram todo o tipo de cabalas ao serviço de intenções obscuras de poder (desde a conspiração judaico-maçónica, ao grupo de Bilderberg ou aos agentes demoníacos George Soros ou Bill Gates), contra o trabalho exaustivo, certamente incerto, mas persistente e exigente por parte da comunidade científica internacional.
O objetivo dos primeiros é negar a realidade: não existe pandemia – é só uma “gripezinha”, como vaticinou essa luminária que dá pelo nome de Jair Bolsonaro (a versão grunha escolarizada, Donald Trump, foi perentório na certeza da dissipação da pandemia quando viesse o calor!) –, os milhões de vítimas não morreram de Covid mas de outras enfermidades, a proclamação da inutilidade das máscaras e do distanciamento social, a rejeição de qualquer tipo de confinamento e a alegação de que “o maior vírus é o medo” (como se leu em t-shirts envergadas numa manifestação negacionista, em Lisboa). Trata-se de um relativismo destrutivo e dissolvente, segundo a lógica do “salve-se quem puder” e ao serviço da “lei do mais forte” – o ideal da sociedade neoliberal em todo o seu esplendor. Este “mau relativismo” – aquele que equipara acriticamente qualquer perspetiva, e não aquele que resulta da pluralidade de opiniões e da diversidade de contextos, induzindo um esforço de compreensão e diálogo – como se lhe refere o filósofo e sociólogo francês Raymond Boudon, “acarreta uma profunda confusão intelectual, moral e política, sobretudo porque legitima a ideia de que o cidadão é mais sensível à sedução que à persuasão, ao charme da comunicação que à atração da racionalidade.” (Raymond Boudon, O Relativismo, Lisboa, Gradiva, 2009, p. 114), concluindo mesmo que este tipo de relativismo “esmaga o discernimento.” (ibid., p. 54).
Tal é, precisamente, o caldo mental que alimenta os populismos e os desvarios mais extremistas. Esta narrativa fantasiosa, assente num discurso falsamente libertarista, no sentido da proclamação de uma liberdade individual absoluta contra as regras elementares da vida em sociedade e, por consequência, contra a liberdade dos outros (e, neste caso, pondo mesmo em risco a vida de terceiros), tão bem expressa no slogan “Parem de proibir tanta coisa… Não consigo desobedecer a tudo!!!”, encontram eco nos temas-bandeira de partidos como o Chega, segundo se pode ler no recente Relatório de Segurança Interna (RASI 2020), onde o Serviço de Informações de Segurança (SIS) constata a aproximação dos movimentos de extrema-direita e dos negacionistas da pandemia (DN, 31/3/2021). Também José Pacheco Pereira chamou a atenção para esta ligação: “As origens destes movimentos são muito diferentes, têm várias fontes e algumas tradições, mas hoje fazem parte de uma nova extrema-direita que está a emergir em vários países europeus e nos E.U.A” (Público, 27/3/2021). O enorme sobressalto civilizacional a que assistimos obriga, isso sim, a reconhecer, como justamente faz Pacheco Pereira, que “O custo social e económico da pandemia e do combate à pandemia são os fatores a que se deve prestar mais atenção, para se diminuir o processo de radicalização em curso.”
As conceções obscurantistas e retrogradas emergentes, com eco em jornais como o Observador e o Sol – e difusão viral nas redes sociais – têm também presença assegurada nas televisões. E é este destaque mediático que, em grande medida, alimenta o fenómeno. A difusão das ideias negacionistas tem como fundamento uma visão simplista e maniqueia da sociedade e dos seus problemas. É esta simplificação da realidade – deduzida a partir não de opiniões diferentes, mas de factos diferentes (os famosos “factos alternativos” a que fazia referência a conselheira de Trump, Kellyanne Conway), que nos remete para a convergência entre uma “mentalidade simples” e uma “mentalidade fechada” – a simple-mindedness e a closed-mindedness – conceitos invocadas pela jornalista norte-americana Anne Applebaum (de resto, ela própria assumidamente republicana e conservadora) no seu livro O Crepúsculo da Democracia – o fracasso da política e a apelo sedutor do autoritarismo (Lisboa, Bertrand, 2020). Ora, quando se promovem debates sobre assuntos de ciência e se convidam cientistas e arrivistas ou diletantes, incorre-se no erro capital da igual valoração de uns e de outros, o que é profundamente demagógico e altamente perturbador. Como, a este propósito, sublinha Carl Zimmer, jornalista de ciência do The New York Times, “Se estiver a escrever um artigo sobre Geologia, não vou telefonar a alguém que acredita que a Terra é plana. Atribuir legitimidade a pontos de vista que não têm base científica é ridículo.” (Visão, 8/4/2021).
A ciência pode não ser perfeita ou infalível; mas é o melhor que o engenho humano alcança. O conhecimento científico é o que há de mais sistemático, rigoroso e informado em cada momento histórico (é que, de facto, “a Terra move-se”!). Claro que o que é promovido e o que se faz com esse conhecimento levanta todo um outro conjunto de questões.… que a ciência explica.
Hugo Fernandez