A propósito da sua última produção, Elogio da dúvida (Lisboa, Edições 70, 2021) diz-nos a filósofa catalã Victoria Camps, “São as certezas que nos atraem, não as dúvidas. Estas, pelo contrário, obrigam-nos a pensar, exigem-nos muito esforço. E é por isso que, habitualmente, os seres humanos se ficam por aquilo que tomam por certo.” (Visão, 11/2/2021). Simplicidade, unidade, homogeneidade, segurança, são os conceitos essenciais deste processo de descomplicação da realidade que, pelo contrário, se apresenta sempre como complexa, ambígua, plural, contraditória e conflituante, diversidade esta geradora de desconfiança, medo e necessidade de proteção e de apaziguamento da consciência.
É neste contexto que o fenómeno político Trump e a generalidade das derivas populistas se podem entender. A investigadora da linguagem, Anna Szilágyi, em entrevista ao Público (18/10/2020), referiu-se à novidade trazida pelo discurso político de Donald Trump, com a utilização de palavras simples, constantemente repetidas, frases que não terminam, até impropérios, naquilo que esta estudiosa caracteriza por “informalidade radical”. Como disse um dia o então candidato às eleições presidenciais norte-americanas de 2016, “I’ve got the best words”. A sensação transmitida a quem o escuta, em virtude da extrema coloquialidade do discurso de Trump, é a de que “ele fala como eu”, levando à imediata identificação. E mais: “Quem ouve pode achar que se esta pessoa fala assim em público, é muito sincera. Ao não ajustar o estilo, pode gerar uma sensação de confiança em quem ouve. Até pode ser vista como heroica, alguém que não se autocensura.” A juntar a isto há a bazófia típica do vendedor – por exemplo, com o recurso constante a superlativos – e a desfaçatez no insulto e estigmatização dos adversários – “crooked Hillary”, “sleepy Joe”, etc. Tudo isto concorre para uma imagem de confiança e energia. E, como afirmou o ideólogo da campanha presidencial de Trump em 2016, Steve Bannon, aquele tinha sido eleito com base em três slogans: “Drenem o pântano”, “Prendam a Clinton”, “Construam o muro na fronteira”. Para Bannon, “Isso era pura raiva”, acrescentando “Raiva e medo são o que faz as pessoas irem às urnas.” (cit. em Maria Vlachou, “A curadoria do desconforto”, Público, 6/2/2021). Nas palavras de Szilágyi, “Este tipo de retórica ativa emoções fortes, provoca sentimentos.” Sobretudo dá-nos uma visão simplista – e necessariamente distorcida – do mundo. No seu esquematismo fundamentalista chega a ser criminosa, porque é enganadora e enfraquece a capacidade de entendimento da realidade e a possibilidade da verdadeira resolução dos problemas.
Ora, é no contexto desta simplificação da realidade – que, dada a sua complexidade intrínseca, nos transmite uma imagem que não pode deixar de ser caricatural – que vem a propósito o conceito de agnatologia, termo usado pela primeira vez em 2008 pelo historiador norte-americano Robert Proctor, professor da Universidade de Stanford, para designar a “ciência da ignorância” e que lhe serviu para analisar o efeito do primeiro ano da presidência de Donald Trump, caracterizado como “a idade de ouro da ignorância”. Desde 2008 que Proctor vem chamando a atenção para a ignorância não como mera ausência de conhecimento, mas como o resultado de um processo de “produção cultural de ignorância”. Como explica a professora e investigadora do Instituto de Comunicações da Universidade Nova, Carla Baptista, que cita o académico estadunidense, “A ignorância é manufaturada, culturalmente induzida e suporta projetos de poder”, acrescentando que “A produção cultural de ignorância utiliza duas estratégias discursivas: exponenciar a dúvida (os dados são manipulados para criar desconfiança sistémica) e promover a controvérsia (fabricar inimigos).” (Carla Baptista, “Os 3D das presidenciais: desigualdade, desinformação e demagogia”, Le Monde Diplomatique, ed. port., fevereiro de 2021).
Num inesperado laivo de lucidez, Carlos Rodrigues, diretor-executivo do Correio da Manhã e da CMTV, invocando Larry King, pôs o dedo na ferida relativamente àquilo que designou como “entrevista argumentativa”. Num artigo intitulado “Ouvir ou falar?” (o falecido jornalista norte-americano Larry King dizia que nunca tinha aprendido nada enquanto falava, mas apenas enquanto ouvia), e a propósito da cobertura televisiva da pandemia de Covid-19, Carlos Rodrigues afirma: “A entrevista argumentativa organiza-se sempre da mesma forma: o jornalista diz que não é um especialista. A seguir a exaltar o óbvio, cita uma série de números e uma quantidade suficientemente avassaladora de estatísticas, com a chancela de uma instituição científica qualquer, idealmente misturando universidades portuguesas e estrangeiras. Segue-se a emissão de uma qualquer síntese, em geral condizente com as mensagens prevalecentes nesse dia nas redes sociais, meio no qual as estrelas do telejornalismo são cada vez mais useiras e vezeiras. Com sorte, e ainda a digerir a quantidade avassaladora de informação que também acabou de ouvir pela primeira vez, o entrevistado consegue balbuciar alguma reflexão que faça sentido, para logo ser interrompido pela reafirmação de alguma contradição/esquecimento ou responsabilidade atribuível ao próprio. Por vezes tudo isto termina após um conjunto de frases desconexas de quem aceitara ser entrevistado, mas que afinal se apanha a ser confrontado com as opiniões do jornalista.” (TVGuia, 18/2/21). A missão de esclarecimento e de informação própria da comunicação social perde-se assim na assunção espúria de um poder que não deve ser o seu. Ao invés, insiste-se na reprodução da ignorância ao serviço de interesses obscuros e, sobretudo, não escrutinados. Esquecem-se as regras mais elementares da relevância informativa e do interesse público, substituídas pela inculcação ideológica mais descarada.
Os debates eleitorais da última campanha presidencial em Portugal são um bom exemplo disso. Como sublinha Carla Batista, “Esta é a realidade comunicacional do Chega: foco máximo na amplificação mediática das mensagens, preocupação mínima com a sua coerência ou seriedade.”, acrescentando, “Ventura em 2020, tal como Trump em 2016, prefigurou-se como o ator principal.” (Carla Batista, op. cit.). Carla Batista conclui de forma lapidar: “Mas a cultura cívica que amplifica as mensagens populistas é fabricada pelos media. A manta de retalhos em que assentou a comunicação eleitoral do Chega espelha as aporias do sistema mediático contemporâneo, alimentado por detritos que gravitam os mundos offline e online. Notícias velhas, (des)informação omissa, imagens fabricadas, excertos de intervenções descontextualizadas, tudo pode e foi utilizado para aumentar descrença e hostilidade. […] Não é expectável que a televisão-espetáculo seja uma instituição credível para regular a política-populista. Ambas se fertilizam, e o futuro provoca o mesmo calafrio do poema de Álvaro de Campos: «Sei que me espera qualquer coisa/Mas não sei que coisa me espera.»”
Hugo Fernandez