Albardas e Alforges... nunca vi nada assim! Minto... já vi!
Terça-feira, 26 de Janeiro de 2021
ANATOMIA DO PENSAMENTO FASCISTA

No passado dia 6 de janeiro, aconteceu o impensável: o assalto ao Capitólio, em Washington, sede do poder legislativo americano e um dos símbolos mundiais da democracia, por parte de uma horda de bárbaros fanatizados por um dirigente político demencial e assassino, Donald Trump. Apesar de derrotado em eleições perfeitamente livres e justas, deixou a sua marca indelével de ódio, intolerância, ignorância e destruição, num país que governou durante 4 anos de autêntico pesadelo. Perante tal acontecimento, impõe-se a questão: à entrada da terceira década do século XXI é pertinente falar do fenómeno fascista?

A resposta a esta interrogação foi-nos dada num artigo de opinião do jurista e sociólogo Boaventura de Sousa Santos no Jornal de Letras (novembro de 2020) intitulado “Fascismo 2.0: curso intensivo”. Neste texto notável (porque sumamente clarividente), que utilizarei como guia de reflexão, o académico coimbrão traça-nos um roteiro do pensamento reacionário contemporâneo, que tem como lema geral “como usar a democracia para a destruir”. Percorrendo o pensamento de ditadores como Trump, Bolsonaro ou Duterte, Sousa Santos discorre sobre alguns dos seus princípios políticos essenciais. Não reconhecer resultados eleitorais desfavoráveis é um deles, partindo do axioma de que “a democracia só serve para chegar ao poder. Uma vez no poder, nem a governação, nem a rotação democrática é aceitável.”

Seguindo a mesma lógica, assistimos à absoluta autarcia do pensamento fascista. Nada do que é desfavorável à causa pode ser avaliado segundo os mesmos critérios do que lhe é favorável; se serve a causa é ótimo, se não, precisa de ser eliminado. Deve, por isso, falar-se apenas para os convertidos, naquilo que é uma autêntica atitude de seita. Se se alargar o campo social de intervenção, isso apenas decorre da justeza da mensagem e não de uma preocupação prévia com o alcance da sua difusão. Como sublinha Boaventura, “Nunca falar ou governar para o país. E governar sempre e apenas para a base social.” Neste pressuposto, o jogo democrático, com a necessidade do convencimento político, do estabelecimento de compromissos, do suavizar da mensagem e incorporação da diferença, da busca de consensos e da tentativa de agradar a gregos e troianos, é liminarmente rejeitado pelo pensamento fascista, para o qual “A autoestima da base social é o único serviço político sério.”

Para os fascistas, o ressentimento é o “recurso político mais precioso”, recorrendo sistematicamente a dicotomias simplistas e infundadas – nacional/estrangeiro (imigrante ou refugiado), justiça/excesso de direitos (preconceito garantístico), empreendedorismo/subsidiodependência (preguiça dos pobres e trabalhadores), brancos/negros, cristãos/muçulmanos, maiorias/minorias, etc. Tudo se reduz a um jogo de soma nula, em que um ganha o que o outro perde. Como refere Sousa Santos, “A política do ressentimento exige, além de bodes expiatórios, teorias da conspiração, demonização dos opositores, ataque sistemático aos media, à ciência e a todo o conhecimento que invoque especial perícia, incitamento à violência e ao ódio para eliminar argumentos, autoglorificação do líder como único defensor fiável das vítimas.”

E quanto ao líder fascista? “A realidade não existe”, diz Boaventura, “O líder mostra o controle dos factos sobretudo (1) quando faz parar a realidade supostamente adversa, ou (2) quando, não podendo pará-la, lhe retira toda a sua dramaticidade. Trump mostrou o caminho: pára-se a pandemia se se deixar de falar dela e, para deixar de ser grave, basta parar a testagem intensiva.” (até porque, como dizia Bolsonaro, com a desconcertante franqueza dos néscios, “Um dia todos vamos morrer”!). Sousa Santos chama a atenção para um aspeto matricial da ideologia fascista: “Como para o fascismo a mentira é tão verdadeira quanto a verdade, quanto mais dramático for o contraste da invenção com a realidade, tanto melhor.”

Perante a versão radical do capitalismo – o neoliberalismo –, indutor de uma crescente degradação das condições de vida e a simultânea concentração extremada das riquezas, há cada vez mais camadas da população que se sentem ameaçadas e abandonadas à sua sorte, independentemente de quem está no poder. Com o enfraquecimento ou desaparecimento de alternativas políticas credíveis e o neoliberalismo triunfante, passou a viver-se num círculo vicioso de conformismo/ressentimento/extremismo galopantes. Neste contexto, e como explica Boaventura, “A polarização já não é entre esquerda e direita. É entre o sistema (deep state) e as maiorias deserdadas, entre o 1% e os 99%.”, por mais mistificadora que esta visão se apresente. Mas, como acrescenta o académico coimbrão, o fascismo 2.0 está “longe de estar contra o 1%, é financiado por ele. A polarização contra o 1% é meramente retórica e visa disfarçar a verdadeira polarização entre a democracia e o fascismo 2.0, para que o fascismo prevaleça democraticamente.”

Boaventura de Sousa Santos termina a sua reflexão com uma referência ao caso nacional, o que, tendo em conta o que aconteceu nas eleições presidenciais do passado domingo, acaba por ter um caráter verdadeiramente premonitório: “A velha direita pensa que domestica a extrema-direita, mas, na verdade, é o contrário que vai ocorrer. Um exemplo português: o partido de centro-direita, PSD, dispôs-se a coligar-se com o partido Chega, de extrema-direita, «se este se moderar»; resposta imediata do líder do Chega: não é o Chega que se vai moderar, é o PSD que se vai radicalizar. Neste caso, o aprendiz do fascismo 2.0 é o melhor profeta dos tempos.”



Hugo Fernandez





publicado por albardeiro às 17:23
link do post | comentar | ver comentários (1) | favorito

pesquisar
 
Fevereiro 2024
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3

4
5
6
7
8
9
10

12
13
14
15
16
17

18
19
21
22
23
24

25
26
27
28
29


posts recentes

Seminário em Alenquer - A...

O MOMENTO DA VERDADE (em ...

ROLO COMPRESSOR

Reflexão sobre o artigo d...

AS PERGUNTAS

Valorizar os servidores d...

MÍNIMOS

Como será a educação daqu...

EXCESSIVO

DEMOCRACIA

arquivos

Fevereiro 2024

Janeiro 2024

Outubro 2023

Julho 2023

Junho 2023

Abril 2023

Março 2023

Fevereiro 2023

Dezembro 2022

Novembro 2022

Outubro 2022

Setembro 2022

Junho 2022

Maio 2022

Abril 2022

Março 2022

Janeiro 2022

Dezembro 2021

Novembro 2021

Outubro 2021

Agosto 2021

Julho 2021

Junho 2021

Abril 2021

Março 2021

Fevereiro 2021

Janeiro 2021

Dezembro 2020

Outubro 2020

Julho 2020

Junho 2020

Abril 2020

Fevereiro 2020

Janeiro 2020

Novembro 2019

Outubro 2019

Setembro 2019

Junho 2019

Maio 2019

Abril 2019

Março 2019

Janeiro 2019

Novembro 2018

Setembro 2018

Julho 2018

Maio 2018

Abril 2018

Fevereiro 2018

Janeiro 2018

Dezembro 2017

Novembro 2017

Outubro 2017

Setembro 2017

Julho 2017

Junho 2017

Maio 2017

Abril 2017

Março 2017

Fevereiro 2017

Janeiro 2017

Dezembro 2016

Novembro 2016

Outubro 2016

Setembro 2016

Agosto 2016

Julho 2016

Junho 2016

Maio 2016

Abril 2016

Março 2016

Janeiro 2016

Novembro 2015

Outubro 2015

Setembro 2015

Agosto 2015

Julho 2015

Maio 2015

Abril 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Abril 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Setembro 2008

Julho 2008

Junho 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Julho 2007

Junho 2007

Maio 2007

Abril 2007

Fevereiro 2007

Janeiro 2007

Novembro 2006

Outubro 2006

Setembro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

Junho 2006

Maio 2006

Abril 2006

Março 2006

Fevereiro 2006

Janeiro 2006

Dezembro 2005

Novembro 2005

Outubro 2005

Setembro 2005

Julho 2005

Junho 2005

Maio 2005

Abril 2005

Março 2005

Fevereiro 2005

Janeiro 2005

Dezembro 2004

Novembro 2004

Outubro 2004

Setembro 2004

Agosto 2004

Julho 2004

Junho 2004

Maio 2004

Abril 2004

Março 2004

blogs SAPO
subscrever feeds
Em destaque no SAPO Blogs
pub