No passado dia 6 de janeiro, aconteceu o impensável: o assalto ao Capitólio, em Washington, sede do poder legislativo americano e um dos símbolos mundiais da democracia, por parte de uma horda de bárbaros fanatizados por um dirigente político demencial e assassino, Donald Trump. Apesar de derrotado em eleições perfeitamente livres e justas, deixou a sua marca indelével de ódio, intolerância, ignorância e destruição, num país que governou durante 4 anos de autêntico pesadelo. Perante tal acontecimento, impõe-se a questão: à entrada da terceira década do século XXI é pertinente falar do fenómeno fascista?
A resposta a esta interrogação foi-nos dada num artigo de opinião do jurista e sociólogo Boaventura de Sousa Santos no Jornal de Letras (novembro de 2020) intitulado “Fascismo 2.0: curso intensivo”. Neste texto notável (porque sumamente clarividente), que utilizarei como guia de reflexão, o académico coimbrão traça-nos um roteiro do pensamento reacionário contemporâneo, que tem como lema geral “como usar a democracia para a destruir”. Percorrendo o pensamento de ditadores como Trump, Bolsonaro ou Duterte, Sousa Santos discorre sobre alguns dos seus princípios políticos essenciais. Não reconhecer resultados eleitorais desfavoráveis é um deles, partindo do axioma de que “a democracia só serve para chegar ao poder. Uma vez no poder, nem a governação, nem a rotação democrática é aceitável.”
Seguindo a mesma lógica, assistimos à absoluta autarcia do pensamento fascista. Nada do que é desfavorável à causa pode ser avaliado segundo os mesmos critérios do que lhe é favorável; se serve a causa é ótimo, se não, precisa de ser eliminado. Deve, por isso, falar-se apenas para os convertidos, naquilo que é uma autêntica atitude de seita. Se se alargar o campo social de intervenção, isso apenas decorre da justeza da mensagem e não de uma preocupação prévia com o alcance da sua difusão. Como sublinha Boaventura, “Nunca falar ou governar para o país. E governar sempre e apenas para a base social.” Neste pressuposto, o jogo democrático, com a necessidade do convencimento político, do estabelecimento de compromissos, do suavizar da mensagem e incorporação da diferença, da busca de consensos e da tentativa de agradar a gregos e troianos, é liminarmente rejeitado pelo pensamento fascista, para o qual “A autoestima da base social é o único serviço político sério.”
Para os fascistas, o ressentimento é o “recurso político mais precioso”, recorrendo sistematicamente a dicotomias simplistas e infundadas – nacional/estrangeiro (imigrante ou refugiado), justiça/excesso de direitos (preconceito garantístico), empreendedorismo/subsidiodependência (preguiça dos pobres e trabalhadores), brancos/negros, cristãos/muçulmanos, maiorias/minorias, etc. Tudo se reduz a um jogo de soma nula, em que um ganha o que o outro perde. Como refere Sousa Santos, “A política do ressentimento exige, além de bodes expiatórios, teorias da conspiração, demonização dos opositores, ataque sistemático aos media, à ciência e a todo o conhecimento que invoque especial perícia, incitamento à violência e ao ódio para eliminar argumentos, autoglorificação do líder como único defensor fiável das vítimas.”
E quanto ao líder fascista? “A realidade não existe”, diz Boaventura, “O líder mostra o controle dos factos sobretudo (1) quando faz parar a realidade supostamente adversa, ou (2) quando, não podendo pará-la, lhe retira toda a sua dramaticidade. Trump mostrou o caminho: pára-se a pandemia se se deixar de falar dela e, para deixar de ser grave, basta parar a testagem intensiva.” (até porque, como dizia Bolsonaro, com a desconcertante franqueza dos néscios, “Um dia todos vamos morrer”!). Sousa Santos chama a atenção para um aspeto matricial da ideologia fascista: “Como para o fascismo a mentira é tão verdadeira quanto a verdade, quanto mais dramático for o contraste da invenção com a realidade, tanto melhor.”
Perante a versão radical do capitalismo – o neoliberalismo –, indutor de uma crescente degradação das condições de vida e a simultânea concentração extremada das riquezas, há cada vez mais camadas da população que se sentem ameaçadas e abandonadas à sua sorte, independentemente de quem está no poder. Com o enfraquecimento ou desaparecimento de alternativas políticas credíveis e o neoliberalismo triunfante, passou a viver-se num círculo vicioso de conformismo/ressentimento/extremismo galopantes. Neste contexto, e como explica Boaventura, “A polarização já não é entre esquerda e direita. É entre o sistema (deep state) e as maiorias deserdadas, entre o 1% e os 99%.”, por mais mistificadora que esta visão se apresente. Mas, como acrescenta o académico coimbrão, o fascismo 2.0 está “longe de estar contra o 1%, é financiado por ele. A polarização contra o 1% é meramente retórica e visa disfarçar a verdadeira polarização entre a democracia e o fascismo 2.0, para que o fascismo prevaleça democraticamente.”
Boaventura de Sousa Santos termina a sua reflexão com uma referência ao caso nacional, o que, tendo em conta o que aconteceu nas eleições presidenciais do passado domingo, acaba por ter um caráter verdadeiramente premonitório: “A velha direita pensa que domestica a extrema-direita, mas, na verdade, é o contrário que vai ocorrer. Um exemplo português: o partido de centro-direita, PSD, dispôs-se a coligar-se com o partido Chega, de extrema-direita, «se este se moderar»; resposta imediata do líder do Chega: não é o Chega que se vai moderar, é o PSD que se vai radicalizar. Neste caso, o aprendiz do fascismo 2.0 é o melhor profeta dos tempos.”
Hugo Fernandez