A crise pandémica que vivemos (e, a bem dizer, a generalidade das outras que a história registou) parece destinada a confirmar aquela intuição tão sarcástica quanto certeira de George Orwell, na sua consagrada obra Animal Farm, publicada em 1945, de que “os animais são todos iguais, mas alguns são mais iguais que os outros”. Com efeito, nas justas palavras da jornalista Sandra Monteiro, as principais vítimas do Covid-19 “São os mais pobres, cujos rendimentos nunca permitem ficar em casa sem trabalhar, nem no estado de emergência. São aqueles cujas casas não têm condições de habitabilidade e cujos meios de deslocação para o trabalho não permitem cumprir regras de higiene e distanciamento físico. São aqueles cujos empregos, precários, temporários ou informais, já antes da pandemia colocavam problemas de saúde e segurança, concentravam a maior parte dos acidentes de trabalho e continuam a carecer da intervenção da Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT).” (editorial do Le Monde Diplomatique, ed. portuguesa, junho 2020). Como explica a diretora do Le Monde Diplomatique português, “Muito invisíveis no espaço mediático, estes trabalhadores continuaram a desempenhar funções essenciais fossem quais fossem as condições, porque qualquer perda de rendimento era insuportável. Saíram e voltaram a casa com medo de infetar e de ser infetado. Foram os primeiros a saber que os transportes iam cheios demais, que não tinham equipamentos de proteção adequados, mas não puderam dar-se ao luxo de parar.”
É esta mesma lógica exploradora do capitalismo reinante que, por outro lado, viabiliza negócios tão escandalosos como os do Novo Banco. Os prejuízos deste banco, detido maioritariamente pela fundo abutre norte-americano Lone Star (ou, como se designa em economês muito politicamente correto, fundo de private equity), cresceram 92% no primeiro trimestre deste ano, quando tinham ascendido, em 2019, a prejuízos de 1059 milhões de euros. No momento em que são injetados pelo Estado mais 850 milhões de euros no Fundo de Resolução para o financiamento desta instituição bancária (último pacote de uma transferência que orça, desde agosto de 2014, em mais de 7 mil e 800 milhões de euros), a remuneração da respetiva equipa de gestão, que aumentou 75% em dois anos (para perto de 2,5 milhões de euros), viu-se reforçada com a atribuição de prémios de desempenho na ordem dos 2 milhões de euros. Mas para premiar o quê, se durante este período o banco não fez mais do que desbaratar dinheiros públicos e acumular prejuízos? Talvez não fosse mau lembrar princípios elementares de gestão empresarial como os do “oversight and accountability”, que podemos traduzir por escrutínio e responsabilização.
Infelizmente, não é caso único. As empresas portuguesas cotadas no PSI20 (muitas delas beneficiando de ajudas do Estado) vão distribuir mais de dois mil milhões de euros de dividendos aos seus acionistas. As gigantes nacionais EDP e Galp distribuíram mesmo um montante de dividendos relativos ao exercício do ano passado superior aos lucros alcançados, respetivamente 695 milhões (situando-se o lucro de 2019 em 512 milhões) e 580 (com lucros de 560 milhões de euros). Com o país a braços com uma contração de cerca de 8% do PIB (segundo o FMI), perto de um milhão de trabalhadores em lay-off , centenas de milhares de outros com os parcos rendimentos diminuídos por reduções de horário, apoio à família ou absoluta precarização da sua situação laboral e os números do desemprego a atingirem os dois dígitos, os rendimentos intocados destes nababos são verdadeiramente obscenos (Visão, 14/5/2020). Se pensarmos que todos os anos se perdem cerca de 250 milhões de euros de receita tributária em Portugal só com o dinheiro que vai para o paraíso fiscal holandês, a narrativa do país “viver acima das suas possibilidades” perde todo o sentido.
E se António Mexia, o gestor nacional mais bem pago, recebeu 2,2 milhões de euros o ano passado (52 vezes mais do que a média dos trabalhadores da EDP), os presidentes executivos das cotadas norte-americanas levam para casa, em média, 17 milhões de euros por ano, cerca de 280 vezes mais que os seus trabalhadores. O patrão da Amazon, Jeff Bezos, o homem mais rico do mundo (com um património calculado em 149 mil milhões de dólares, isto é, 60% da riqueza gerada anualmente em Portugal), conseguiu, no contexto da epidemia, e com o aumento das encomendas online, valorizar a sua fortuna em 34,5 mil milhões de dólares, segundo dados da Bloomberg, havendo 80 multimilionários que já enriqueceram, este ano, mais de mil milhões de dólares, de que se destaca Mark Zuckerberg; com o confinamento global e recordes na utilização das plataformas digitais, este multimilionário norte-americano amealhou mais de 9 mil milhões de dólares (Visão, 11/6/2020).
Por isso, aqueles que pressagiam mudanças radicais da nossa vida em consequência da pandemia, estão concretamente a falar de quê? Alguém duvida que, assim que for descoberta a vacina, ou pelo menos um tratamento eficaz contra o vírus, tudo voltará a ser como dantes (a não ser, talvez, o epifenómeno estilístico do uso da máscara)? É que nada de estrutural sofreu verdadeiramente alterações. Os constrangimentos impostos à vida coletiva são conjunturais e com o limite temporal que a terapêutica ditar.
E é pena que assim seja. Segundo a constatação do economista e investigador do CES (Centro de Estudos Sociais) José Reis, “Os tempos que correm representam o mais radical confronto com a lógica do capitalismo que alguma vez presenciámos.”, explicando que “O sistema social, económico e político cuja natureza intrínseca consiste no alargamento incessante das transações, nas mobilidades, na acumulação, na exclusão de muitos (pela propriedade e pelo dinheiro) do acesso aos frutos da criação de riqueza, na exploração de recursos, espaços e pessoas e, enfim, na instituição de desigualdades, viu-se subitamente perante a paragem, o regresso de muitos de nós a um espaço limitado, a inviabilidade do exercício generalizado das atividades, a instituição maciça de formas de provisão de natureza «horizontal», onde o primeiro elemento não é o negócio. E, mais ainda, viu-se perante a possibilidade do regresso recorrente deste tipo de limitações e perante a necessidade de reconversões intensas que terão de se confrontar com outros princípios que não os da concorrência e do lucro, seguindo a trajetória linear do tempo.” (José Reis, “Cuidar de Portugal: hipóteses de economia política em tempos convulsos”, Le Monde Diplomatique, ed. portuguesa, junho 2020). Ao reiterar a opinião de muitos sobre a necessidade da economia estar ao serviço da sociedade e não o inverso, José Reis defende que se aproveite esta oportunidade para a implementação do que designa por “economia do cuidado”.
Até porque, como refere a jornalista e escritora brasileira Eliane Brum no El País (citada pelo jornalista António Rodrigues), “o pior que nos pode acontecer depois da pandemia é precisamente voltar à normalidade.” (Público, 17/4/2020).
Hugo Fernandez