SOBREVIVÊNCIA
Nestes dias de quarentena, dei por mim a reler Equality, uma das mais conhecidas obras do historiador e pensador social inglês da primeira metade do século XX, Richard Tawney, tendo-me deparado com uma frase que penso que se adapta bem ao momento que atravessamos: “Mankind, it seems, is more easily shocked by the unusual than by the shocking.” (Richard Tawney, Equality, London, George Allen & Unwin, 1951, p. 91). De facto, surpreendemo-nos mais com a irrupção inusitada da pandemia do covid-19 – o que é perfeitamente compreensível – do que com a total incapacidade demonstrada pelos governantes de alguns dos mais importantes países do mundo em fazer-lhe frente – o que devia constituir um sinal inequívoco de alarme e questionamento sobre as sociedades em que vivemos. Se a pandemia mata, a irresponsabilidade de alguns dirigentes mata muito mais. Se, no primeiro caso, falamos da saúde das populações, no segundo, temos de lhe acrescentar a saúde das nossas democracias.
Comecemos pelo caso flagrante da primeira potência mundial. Nos EUA, os efeitos da imbecilidade de Donald Trump são por demais evidentes, com este a proferir declarações tão inacreditáveis quanto infantis a propósito de um tio que percebia imenso do assunto e que o “vírus chinês” – como faz questão de se lhe referir – não era tão grave quanto os chineses queriam fazer passar; chegou a apelidar a pandemia de “embuste”. Com os EUA a registar já um enorme número de infetados e mortos, Donald Trump questionou, no passado dia 26 de março, na Fox News, a necessidade de ventiladores, dizendo que normalmente há dois por hospital e, por isso, não compreendia a razão dos pedidos repentinos da aquisição de 30 mil. O conjunto de declarações proferidas pelo Presidente norte-americano nos últimos dois meses mostra, aliás, até que ponto vai o seu cabotinismo: a 10 de fevereiro, profetizava que “Em princípio, o vírus de que estamos a falar irá embora em abril, quando o tempo aquecer” e a 27, já com perto de uma centena de casos, reiterava que “O vírus vai desaparecer. Um dia – como um milagre – ele vai desaparecer”; a 7 de março, já a atingir 500 casos, afiançava, “Não, não estou nada preocupado. Estamos a fazer um grande trabalho”, para, a 17 de março, já com mais de cinco mil casos e várias centenas de mortos, acabar por reconhecer, ainda que distorcendo declarações anteriores com a mais descarada desfaçatez, “Isto é uma pandemia. Senti que era uma pandemia muito antes de lhe chamarem pandemia”. Esta atitude é tão grosseira que levou, por exemplo, o governador do Illinois, J. B. Pritzker, a declarar “Presidente, você deve liderar uma resposta nacional em vez de fazer birras. Onde estão os testes? Saia do Twitter e faça o seu trabalho!” (Visão, 28/3/2020).
Aliás, crescem o número de governadores estaduais (alguns deles republicanos, como é o caso do governador da Carolina do Sul, Lindsey Graham, considerado muito próximo do Presidente) que discordam abertamente da política irresponsável e errática de Trump. É a este ponto que as coisas chegaram. Os números de infetados e mortos nos EUA têm vindo a aumentar exponencialmente – fala-se numa previsão que oscila entre os 3 a 6 milhões de infetados e entre 100 e 200 mil mortos – sendo já o principal epicentro mundial do contágio. “Estamos a olhar para algo catastrófico a um nível que não observámos numa doença infeciosa desde 1918”, afirmou Jeffrey Shaman, líder da equipa de investigadores da Universidade de Columbia ao The New York Times, o grupo de cientistas que concluiu que o número de casos reais relativamente aos registados tinha, seguramente, que ser multiplicado por 10 (Visão, 28/3/2020). Recorde-se que a gripe pneumónica de 1918-19 foi a pior epidemia da história desde a Peste Negra no século XIV, tendo morto 50 milhões de pessoas em todo o mundo.
A única preocupação de Trump – e repito, a única (não se trata de nenhum processo de intenções, antes decorrendo das múltiplas declarações públicas do governante nesse sentido) – é com os efeitos económicos devastadores que esta pandemia terá na sua reeleição (suspeito mesmo que vão ser feitos todos os esforços por parte da administração norte-americana e pelos republicanos para adiarem as eleições presidenciais de novembro). Já num período avançado de contágio comunitário, Trump assegurou que a atividade económica iria ser retomada em semanas e não em meses, com a justificação tão fanfarrona quanto patética de que “O nosso país não foi construído para ser fechado.” Quando anunciaram a previsão de 50 mil mortos, a resposta de Trump foi: “É muito, mas olhem para os acidentes de carro, que são muito mais do que todos os números de que estamos a falar. Isso não significa que vamos dizer a todos para pararem de guiar. Então vamos fazer coisas para desbloquear o nosso país” (Visão, 28/3/2020). Palavras para quê? (Alguém tenha a caridade de explicar a esse cretino o que é um contágio). Ao subestimar desta forma a ameaça, Trump cria as condições objetivas para a morte de milhares dos seus conterrâneos. A imputação do crime de homicídio em massa por negligência não terá qualquer dificuldade em ser provado.
No mesmo sentido, Boris Johnson resistiu a avançar com as medidas necessárias para travar a propagação do vírus, levando a cabo uma estratégia irresponsável e verdadeiramente suicida que passava por deixar que pelo menos 60% da população fosse infetada com vista a criar a denominada “imunidade de grupo”, atitude totalmente à revelia das indicações da OMS e dos princípios sanitários adotados pelos principais países atingidos pela pandemia, e apesar de especialistas terem alertado o poder de Downing Street para a possibilidade de tal estratégia vir a provocar cerca de meio milhão de mortos no Reino Unido. Perante a catástrofe provocada pela inação, que se prolongou por semanas, o executivo britânico acabou por mudar radicalmente de posição, tendo, no entanto, perdido tempo crucial no combate ao covid–19. O número crescente de infetados foi caracterizado por responsáveis hospitalares ingleses como um “tsunami contínuo” com uma progressão muito maior do que alguma vez se imaginou. Boris Johnson, depois da negligência criminosa dos primeiros dias, teve que inverter a marcha e calar a sua bazofia compulsiva (acabando, ele próprio por ser infetado) e admitir que o Reino Unido atravessava “a pior crise sanitária de uma geração”. Mas, entretanto, estas tergiversações nas orientações governamentais contribuíram para a morte de milhares de pessoas.
E se estes exemplos são suficientemente elucidativos, o caso do Brasil é tão dramático quanto caricato. Também as declarações de Jair Bolsonaro (de quem Pedro Mexia disse, no programa televisivo “Governo Sombra”, que era “Trump sem a escolaridade obrigatória”) são inacreditáveis; depois de desvalorizar a pandemia como um simples “resfriadinho” e sublinhar que “Depois da facada, não vai ser uma gripezinha que vai me derrubar, não vai não!”, Bolsonaro acabou por afirmar aquilo que, dadas as circunstâncias, deveria ser verdadeiramente indizível: “todos temos que morrer um dia”! O cineasta Sérgio Tréfaut, a residir no Rio de Janeiro, não hesitou em qualificar tamanha alarvidade: “Asco. Repulsa. Nojo. É o mínimo que o atual Presidente do Brasil, eleito pela população, suscita em qualquer pessoa com um resto de razão.” (Público, 24/3/2020), acrescentando, “É inevitável que o Brasil entre brevemente em estado de epidemia generalizada.”, dada a atitude “demente” do seu presidente. Dá-nos, aliás, conta de um caso verdadeiramente chocante e que diz bem do tipo de sociedade que é a brasileira (depois de Bolsonaro ter elogiado a suposta resistência dos brasileiros às doenças, com o edificante exemplo dos “moleques” miseráveis que tomavam banho nos esgotos das grandes cidades e nada lhes acontecia): “O primeiro caso de morte por coronavírus no Estado do Rio de Janeiro é emblemático da cruel realidade do país. Trata-se de uma empregada doméstica, contagiada por uma patroa que regressou de Itália e que, apesar de se saber portadora do vírus, não dispensou a empregada e não a protegeu.”
Para além do problema sanitário, toda esta crise coloca, com particular acuidade, a questão da capacidade de muitos dos atuais governantes cumprirem as suas obrigações para com os seus povos, segundo o velho – mas sábio – princípio jurídico romano “salus populi suprema lex est” (o bem-estar do povo é a lei suprema). Torna-se evidente a indigência intelectual e a total impreparação para o desempenho dos cargos governativos de um Jair Bolsonaro ou de um Donald Trump – personagens que o jornalista José Carlos de Vasconcelos fez questão de qualificar como “os execráveis” (Visão, 19/3/2020) – ou do oportunismo burgesso e leviano de um Boris Johnson. Não só a sua ação prejudica claramente os respetivos países e as suas populações, como coloca mesmo em causa o funcionamento da democracia, descredibilizada por tamanha incompetência, confirmando a desencantada ironia do dramaturgo irlandês George Bernard Shaw, segundo o qual “A democracia é um sistema que garante que não seremos mais bem governados do que merecemos”. Para o historiador e filósofo israelita Yuval Noah Harari, autor do best-seller internacional Sapiens: uma Breve História da Humanidade, não parece haver dúvidas: “Faltam líderes à Humanidade na batalha contra o coronavírus.”, sublinhando que “Para derrotar uma epidemia, as pessoas precisam de confiar nos cientistas, os cidadãos precisam de confiar nas autoridades públicas e os países precisam de confiar uns nos outros.” (Visão, 19/3/2020).
Perante a necessidade da imposição de estados de emergência e do estabelecimento de medidas de confinamento social, dir-se-ia que a própria democracia pode estar em perigo e constituir também uma das vítimas da crise atual. Mas os hossanas cantados à eficácia chinesa no combate à pandemia, com a imposição de uma série de medidas draconianas que muitos gostariam de ver replicadas nos seus países, escondem o simples facto de que a reação inicial das autoridades chinesas foi a de abafar o surto de Wuhan, considerado um sinal de fraqueza do próprio regime, condenando assim à morte muitas milhares de pessoas (incluindo o primeiro médico a denunciar a situação, Li Wenliang, convocado ao Gabinete de Segurança Pública a 3 de janeiro e acusado de fazer falsas declarações e espalhar boatos, sendo severamente repreendido). Tal teria sido, felizmente, impossível de acontecer numa sociedade democrática, onde o escrutínio público é muito maior e mais eficaz. Se temos de sofrer restrições à nossa liberdade, que isso seja feito de forma temporária e limitada, no âmbito das regras de um Estado de direito democrático.
Esta crise chama, sobretudo, a atenção para a importância dos serviços públicos e do Estado social, contra as litanias liberais das privatizações e do “cada um por si”. Que os serviços públicos de que cada país deve dispor deixem de ser vistos como gastos, mas antes como investimentos na qualidade de vida das populações e elementos fundamentais na coesão das respetivas sociedades, provendo-os dos meios necessários para o cumprimento das suas funções e valorizando devidamente todos os profissionais que neles trabalham. Esta poderá ser a consequência mais perene da atual situação.
Poucas vezes estive de acordo com Francisco Assis. Mas quando este ex-dirigente socialista intitula um seu artigo de opinião no Público (28/3/2020), “Bolsonaro, um criminoso de guerra”, não só me apetece felicitá-lo pela frontalidade, como sugerir que se juntem, pelo menos, outros dois nesta troika assassina: Donald Trump e Boris Johnson (a poderíamos acrescentar outras avantesmas, como o presidente da Bielorrússia, o todo poderoso Alexander Lukashenko que sugeriu aos seus concidadãos uma dose diária de vodka para combater o covid-19). Faço então minhas as palavras de Assis: “Jair Bolsonaro não é um canalha acidental. A ausência dos mais leves vestígios de integridade moral constitui a essência da sua personalidade, tal como ela publicamente sempre se manifestou […] Tudo no Presidente brasileiro é do domínio da fraude, da fancaria, da pura indigência mental.” Perante a pandemia e o gigantesco – até pela dimensão do país – problema de saúde pública, Bolsonaro, “Recorrendo a um discurso antirracionalista e anticientífico formulado num tom jocoso […] poderá condenar milhares, senão milhões, de brasileiros à morte. O seu comportamento é imperdoável – considero-o equiparável ao de alguns criminosos de guerra que acabaram por cair na alçada da jurisdição penal internacional.”
Compartilhamos, por isso, o desejo da escritora norte-americana Siri Hustvedt: “Pode-se falar numa espécie de justiça poética se um verdadeiro vírus acabar por ser a causa da queda de Trump. Sim, seria uma espécie de justiça poética maravilhosa.” (Público/Ípsilon, 27/3/2020). Pela sobrevivência de todos nós, que assim seja.
Hugo Fernandez