Albardas e Alforges... nunca vi nada assim! Minto... já vi!
Sábado, 8 de Fevereiro de 2020
ENTENDAMO-NOS

No seu habitual estilo contundente – e desencantado – Santana Castilho denunciou no artigo “Assim vamos”, publicado no jornal Público, aquilo que designa por “ideologia grunha para a Educação do século XXI”, que consiste em “que todos passem sabendo o que souberem, desde que a escola os guarde a tempo inteiro, para que os pais trabalhem cada vez mais, ganhando cada vez menos.” (Público, 2/1/2020). Subitamente, no âmbito do debate sobre o Orçamento de Estado para 2020, a educação voltou à discussão pública e a merecer a atenção dos nossos governantes; pelo que se disse, pelo muito que não se disse e, sobretudo, pelo que estes últimos mostraram não estar dispostos a conceder. E é nesse contexto que as palavras de Santana Castilho merecem alguma reflexão (especialmente para o autor deste texto que é, também ele, professor).

Comecemos pelo enorme logro das reprovações. Há duas ideias feitas que convém, desde logo, desmistificar: a de que a reprovação de um aluno é uma “solução fácil” e a de que os caminhos alternativos para os alunos com problemas de aprendizagem estão ao alcance de qualquer docente. Trabalhar de forma intensiva e diferenciada com os alunos que revelam mais dificuldades, exige precisamente isso: trabalhar de forma intensiva e diferenciada, isto é, de forma individual e personalizada, com aqueles que têm menos capacidades para atingir as competências desejadas, o que é manifestamente impossível de conseguir por parte de um único professor numa turma com perto de 30 alunos. Sobretudo se essas dificuldades têm a ver com distúrbios mentais acentuados (com comportamentos frequentemente disruptivos), com o facto de não saberem ler nem escrever, ou mesmo com o elementar desconhecimento das cores. Estou a falar de alunos que frequentam o 3º ciclo do ensino básico!

A ideia simplista de que todos são capazes de aprender ignora o facto de nem todos serem capazes de aprender as mesmas coisas, com o mesmo grau de exigência e no tempo determinado para o efeito, para já não falar do interesse muito diferenciado dos alunos nessa mesma aprendizagem. Desprovida de qualquer adesão à realidade, esta crença confunde astuciosamente os conceitos de igualdade e equidade, fazendo do direito de “educação para todos”, a fantasia de uma nivelação e uniformidade impossíveis de alcançar. Há é que ter a consciência de que se deve apoiar quem mais precisa e de mobilizar os meios necessários – largamente deficientes nas nossas escolas – para que o acesso à educação seja, efetivamente, para todos. Onde estão esses meios? É preciso lembrar que frequentam o sistema de ensino alunos com graves défices emocionais e cognitivos, a exigirem acompanhamento especializado, e dependências tão acentuadas como uma simples ida à casa de banho ou o acesso à alimentação? Nestas circunstâncias, o rácio de pessoal não docente relativamente a estes discentes não terá de se aproximar do 1 para 1? Estamos, como se sabe, muito longe dessa meta.

É minha convicção que não haverá professores que não desejem o sucesso escolar dos seus alunos. E todos os esforços de cada docente, das escolas e das comunidades educativas no seu conjunto, são feitos nesse sentido. Mas promover a transição generalizada sem atender a qualquer critério de esforço ou de mérito (até da simples frequência), é verdadeiramente repugnante. Avilta os próprios, a quem são criadas expetativas fáceis de desempenho e a ilusão de competências que estão longe de poder satisfazer as exigências que irão enfrentar na sua vida ativa, e perverte a profissão docente e a nobreza do ato pedagógico, transformando o professor num mero amanuense e o ensino num banal procedimento administrativo. Cria, para além disso, uma situação de profunda injustiça em relação aos discentes que, pelo seu empenho e resiliência, conseguem minimizar constrangimentos sociais e familiares presentes na nossa sociedade. Não podemos fazer de conta que essa circunstância não levará ao desânimo e à sensação de inutilidade por parte daqueles que trilharam o caminho do esforço académico, generalizando o laxismo e a indiferença de todos.

Se as retenções têm que ser “um fenómeno infinitamente residual, decorrente de uma excecionalidade absoluta, pedagogicamente validada, em função do efetivo desenvolvimento e superior interesse do aluno.”, como alega o professor universitário João Couvaneiro (JL/Educação 4/12/2019) e está previsto na legislação em vigor, o mérito tem que constituir o critério indispensável dessa avaliação. Não pode decorrer do estabelecimento de quotas, nem de habilidades estatísticas; tem que ser o resultado efetivo do percurso trilhado, garantindo que não deve progredir quem não apresenta condições para tal. Fazê-lo seria mistificador e antipedagógico. Seria disfarçar dificuldades que serão potenciadas, com consequências dramáticas, no futuro.

Sem condições e recursos adicionais, sem a disponibilização de tempos, espaços e a afetação de profissionais de várias áreas que possam dar as respostas diferenciadas que a especificidade dos problemas exige, dificilmente as estratégias e metodologias alternativas que já são desenvolvidas com enorme esforço nas escolas podem, por si só, resultar. Que a retenção é tendencialmente ineficaz e indutora de abandono escolar, parece um dado largamente consensual. Ninguém deseja essa situação. Mas esta circunstância não significa desresponsabilização do sistema educativo. É, pelo contrário, consequência da falta de meios humanos, materiais e organizacionais que possibilitem o acompanhamento adequado – isto é, diferenciado – de todos os alunos. Não é mascarando as diferenças que se alcança o sucesso educativo; é, pelo contrário, assumindo as diferentes capacidades e empenhos que este pode ser atingido. E, para isso, o reforço do pessoal docente, não docente e de técnicos devidamente especializados na assistência às situações mais problemáticas, em número crescente nas nossas escolas, é fundamental. Como diz o conhecido brocardo popular, “não se fazem omeletes sem ovos”.

Uma sociologia oficial de pacotilha descobriu agora o que há muito se sabia: a correlação entre o insucesso escolar e dimensões de natureza social, económica e cultural das famílias. Mas são esses mesmos “sociólogos” que se recusam a reconhecer aquilo que também é evidente: que a escola, como outras instituições, reflete as clivagens existentes na sociedade e que, desprovida dos mecanismos necessários para solucionar a desigualdade social – ainda que se esforce sobremaneira para reduzir as situações mais gritantes (mas paliativos não significam soluções) – não é certamente a esta que se podem assacar responsabilidades por esse facto. Quando João Couvaneiro invoca as declarações de Laborinho Lúcio, numa recente conferência em Almada, segundo o qual “na escola de massas o princípio de igualdade de oportunidades não se verifica à entrada, mas tem de ser criado no percurso, para garantir que esse princípio se concretiza à saída.” (JL/Educação 4/12/2019), estamos no domínio da pura demagogia… e da culpabilização da escola e dos seus profissionais por não conseguirem atingir tal desiderato. Nunca se põem em causa as políticas públicas para o setor, nem o estrangulamento financeiro e a deterioração das condições de laboração a que tem sido sujeito.

Se, como diz este professor universitário da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, “Face à diversidade e heterogeneidade social, a escolaridade obrigatória tem de se constituir como um espaço de inclusão total” (Couvaneiro, JL/Educação), faz-se de conta que os fatores da exclusão não existem na sociedade e que são as escolas, como se fossem ilhas impolutas desligada do meio social, a ter que resolver os problemas que aquela permanentemente cria. Ao voluntarismo hipócrita segundo o qual “Não podemos estar à espera que o mundo venha a ser melhor para só então assumirmos o imperativo quotidiano de mudarmos tudo aquilo que achamos que deve mudar.” (ibid.), as políticas públicas da educação respondem com a crua realidade das carências humanas e materiais, da degradação das instalações e condições de trabalho, da desvalorização e permanente amesquinhamento dos seus profissionais. Cúmplices da iniquidade, estes cantos de sereia são os mesmos que aceitam, passivamente, a degradação do nosso sistema educativo.

Mas se os professores continuam a “não desistir dos seus alunos”, parece que o Governo tem outras prioridades. Persiste o desinvestimento na Educação. Apesar de todas as carências antes referidas, se em 2002 a Educação representava 5,1% do PIB, em 2018 – segundo os últimos dados da Pordata – orçava apenas em 3,6% (entre 2009 e 2018, o setor educativo sofreu um corte de cerca de 867 milhões de euros), não tendo havido alterações significativas desde então. A reivindicação das principais organizações de professores é que, no final da legislatura, se possam atingir os 6% do orçamento de Estado, conforme as recomendações de entidades internacionais insuspeitas como a OCDE ou o Banco Mundial (Jornal da Fenprof, dezembro de 2019). Este desinvestimento significa, desde logo, a falácia das declarações altissonantes sobre a premência da formação dos portugueses e o abandono de “paixões” tantas vezes proclamadas, não deixando de se intuir um certo ambiente de mesquinhez salazarenta.

Teme-se que, na atual situação, se esteja a criar um ensino público de segunda categoria, contemporizador com a ignorância larvar que percorre a nossa sociedade, a par de um ensino de elite – seletivo e privado na sua maior parte – que continuará a apostar, com os meios adequados para o efeito, na formação rigorosa dos seus alunos. Estaremos, 45 anos depois do 25 de abril, a regressar ao sistema discriminatório do Estado Novo, em que apenas uma minoria da população tinha acesso a uma formação académica que lhe permitia singrar na vida e aceder a posições de domínio sobre o conjunto daqueles a quem só era facultada a educação elementar – aprender a ler, escrever e contar – destinada a moldar o caráter dócil e subserviente dos subordinados?

Não admira, por isso, que a profissão docente tenha deixado de ser atrativa, levando ao envelhecimento da classe e à falta, cada vez mais agravada, de professores. Se nos próximos 3 anos, se aposentarão quase 20 mil professores e se formarão pouco mais de 4.000 nas Escolas Superiores de Educação de todo o país (quando, no final da primeira década do século XX eram quase o dobro), o desfasamento entre oferta e a procura é por demais evidente. Este é o resultado de reiteradas políticas de confronto e humilhação da classe docente, de uma implacável proletarização salarial e degradação das condições do seu desempenho profissional (sobrecarga horária, burocracia kafkiana, episódios de desrespeito e indisciplina discente cada vez mais graves e frequentes, stress e burnout crescentes).

Assim, não só não há escola que resista, como não há país que resista! Porque, como justamente sublinhou Derek Bok, o antigo reitor da Universidade de Harvard, “Se você acha que a educação é caraexperimente a ignorância”.

 Hugo Fernandez



publicado por albardeiro às 17:46
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