Título de primeira página do jornal Público de 12 de outubro de 2019: “Prejuízo do SNS mais do que duplica e fica em 848 milhões”, com um lead que nos revela que “Aumento em 2018 foi de 145% – e aqui pasme-se! – mas nunca houve tantas cirurgias nem tantos médicos de família.” Lemos, em vão, o desenvolvimento da notícia nas páginas 14 e 15 do matutino; o disparate enunciado persiste. Fazendo referência aos dados constantes no Relatório e Contas do Ministério da Saúde e do SNS divulgado no site da Administração Central do Sistema de Saúde, fica a saber-se que o denominado “buraco” contabilístico do SNS é explicado, em grande parte, “com o aumento da despesa com pessoal (mais 220 milhões de euros do que em 2017) e da fatura com fornecimentos e serviços externos (mais 230 milhões de euros).”, acrescentando-se, “Em contrapartida, os pagamentos em atraso (a mais de 90 dias) a fornecedores externos diminuíram 358 milhões de euros em comparação com 2017, totalizando 486 milhões de euros no final de 2018.” Perante estes dados, qual é o motivo para alarme?
Constata-se, pelo contrário, que o SNS fez o que era suposto. O aumento dos cuidados de saúde à população (mais cirurgias, mais médicos de família), envolvendo um acréscimo de fornecimentos e serviços externos (a rubrica orçamental que inclui a fatura com cantinas, refeitórios, lavandarias, meios complementares de diagnóstico com recurso a convencionados, contratação de médicos em prestação de serviço, entre outros itens indispensáveis à prestação de uma assistência sanitária eficaz), bem como a diminuição dos pagamentos em atraso e dívidas a fornecedores (sinal elementar de boa gestão), implicaram, naturalmente, um aumento da despesa. Qual é, então, o espanto?
Se pensarmos, como consta do referido relatório, que o ano de 2018 foi aquele em que se fizeram mais cirurgias programadas (mais 6,2%, a percentagem “mais elevada de sempre”) e com “o número mais baixo de sempre de utentes sem médico de família” (690.232), que a quantidade de consultas médicas nos cuidados de saúde primários (centros de saúde) aumentou 1,6% (superando os 30 milhões de atendimentos), que aumentou a comparticipação de medicamentos, bem como a prestação de cuidados continuados, assistência domiciliária e tratamentos de diálise e que a contratação de mais médicos, enfermeiros e outros profissionais do setor (a trabalhar no horário, legalmente consignado, de 35 horas semanais) fez a despesa com pessoal aumentar 5,7%, como era suposto diminuir os encargos do Estado com a saúde? E seria isso desejável face ao acréscimo das necessidades existentes? Deveremos insistir no uso da terminologia economicista – falsamente objetiva e sobretudo artificial – do “prejuízo”, do “défice” ou do “buraco” orçamental?
Falar em défice do SNS só se for para denunciar a recorrente falta de meios (humanos e materiais) que inviabilizam a prestação de melhores cuidados de saúde à população. Se há carências na assistência médica em Portugal – e isso parece insofismável – o que o SNS precisa para poder cumprir a sua função é de um reforço efetivo de investimento que permita suprir cabalmente as deficiências detetadas. Esse é o dever do Estado, esse é o desiderato de qualquer país que se preze. Como sintetizou brilhantemente Sérgio Godinho na canção Liberdade, incluída no seu 3º álbum de originais, À Queima-Roupa, editado nos idos de 1974, "só há liberdade a sério quando houver a paz, o pão, habitação, saúde, educação”. Não serão estas as dimensões essenciais da vida de uma comunidade? Não constituirão estes os direitos elementares da cidadania? Não deverão ser estas as prioridades de qualquer governo responsável e as condições essenciais de qualquer projeto nacional? E, já agora, não deveria ser para isso que pagamos os nossos impostos?
É certo que as despesas com pessoal da saúde representam uma fatia substancial dos encargos do SNS. Mas será que se pretende assegurar um serviço a baixo custo e suprimir os direitos laborais dos seus profissionais? Ou será que se advoga a “poupança” nos cuidados de saúde pela adoção de modelos discriminatórios de assistência que garantam a uns poucos aquilo que se nega à generalidade da população, doravante abandonada à sua sorte? Será que se propõe a pura e simples eliminação dos doentes? Assim o superavit do SNS estava garantido!
Procurar uma gestão racional e a supressão dos desperdícios é uma coisa. Outra completamente diferente é fazer contabilidade mesquinha com a vida das pessoas. As despesas são para ser feitas naquilo que é essencial. É aí que os recursos devem ser alocados. Aliás, o que representa esse montante comparado com o encargo financeiro de resgate aos bancos que ascende, para já, aos 25 mil milhões de euros? Como dizia o outro, “é fazer as contas”.
Hugo Fernandez