O estado de “emergência ambiental” que hoje vivemos radica em dois processos complementares: a necessidade da predação crescente dos recursos por parte de um sistema económico-financeiro despudoradamente ganancioso e irresponsável, que corresponde a uma nova fase de extrativismo desenfreado e acumulação “selvagem” de capital, e o consequente esgotamento dos bens disponíveis, que corresponde a uma acelerada degradação quer da qualidade de vida das populações, quer do meio ambiente planetário. O capitalismo globalizado é o grande responsável por esta situação.
Recusando-nos a identificar o capitalismo como a verdadeira raiz do problema (porque também era de um “capitalismo de Estado” que se alimentavam os socialismos “realmente existentes”) caímos naquilo que, a propósito do tema, Vítor Belanciano apelidou de “alienação ambiental”, explicando que, “Em vez de situar a discussão na política, ela é deslocada para os comportamentos, para as mudanças culturais ou para a ética.” O jornalista questiona se “É possível alguma ação política e social resolver a crise climática sem colocar em causa a estrutura de poder capitalista?”, para responder prontamente: “É pouco crível. […] É preciso pensar na reforma de um sistema que se mostra nocivo à vida sustentável na Terra.” (Público, 4/8/2019).
O ceticismo perante a evidência das alterações climáticas – que o conhecimento científico e a experiência vivencial tristemente comprovam sem margem para dúvidas – provém ou da profunda ignorância dos Trumps e Bolsonaros que por aí andam, ou da ilusão de que haverá sempre uma solução tecnológica para o problema (que mais não seja na preparação da nossa fuga para outro planeta!). Mas tem outra proveniência bem mais insidiosa; a daqueles que defendem a manutenção e mesmo o aprofundamento do atual statu quo, beneficiando dos desejados proveitos do sistema estabelecido a nível mundial, em nome da estabilidade e do crescimento. Estes são os piores, porque sem grande alarde, perpetuam a desgraça existente e antecipam a catástrofe futura.
Parece ser do lado destes que se coloca Carlos Guimarães Pinto, economista e presidente do novel partido Iniciativa Liberal, que, em artigo de opinião no jornal Público (15/8/2019) dissertou sobre os problemas ambientais. Criticando os ambientalistas – que, a dado passo, apelida de “fundamentalistas” – diz que “assumem uma posição quase religiosa em relação ao ambiente, em que a única atitude perante o problema é o sacrifício pessoal e coletivo. Em muitos casos guiados por preconceitos de origem marxista, o «decrescimento» ou o «fim da sociedade capitalista» é apontado como solução para os problemas do planeta.” A solução, para este economista liberal é, precisamente, crescer economicamente e assim responder aos anseios das populações, pois, como diz, “as pessoas só se preocupam com causas comunitárias de longo prazo quando as suas necessidades individuais de curto prazo estão resolvidas.” Dá como exemplo a necessidade de incentivar o progresso tecnológico para facilitar a adaptação do ser humano às alterações anunciadas, mas, para isso – cá está! – “é preciso haver capacidade de investimento e essa só se consegue com países capazes de um crescimento economicamente robusto”. Para Guimarães Pinto, “Chegou o momento de pensarmos no ambiente sob uma perspetiva realista e cientificamente transversal, abandonando perspetivas simplistas e enviesadas ideologicamente.”, concluindo, de forma eloquente: “Abdicar do crescimento económico, hostilizar quem o promove, é de uma profunda irresponsabilidade.”
Em oposição ao discurso desenvolvimentista, do que se trata é de promover uma economia sustentável que não pode deixar de passar por um decréscimo assinalável do consumo e dos gastos e por uma diminuição das assimetrias entre países e entre pessoas, através de um uso racional dos bens, da reutilização e reciclagem dos produtos e serviços e de uma distribuição mais igualitária da riqueza. Isto é, por uma significativa alteração dos atuais padrões de acumulação, desgaste e desperdício dos bens disponíveis. É óbvio que dificilmente conseguiremos atingir estes propósitos no âmbito de um sistema societário assente na busca obsessiva do lucro, da desregulação económica e da exploração do trabalho, do extremar das desigualdades, do esbanjamento olímpico e da pilhagem descontrolada dos recursos. Ou seja, do capitalismo! Urge, portanto, encontrar outro modelo de sociedade.
É justamente contra a despolitização do problema que o sociólogo norte-americano Jason W. Moore faz, desde 2013, a distinção entre uma visão demasiado anódina do que designa por “Antropoceno” – época da história da Terra a partir da qual a ação humana alterou negativa e de forma decisiva o ecossistema – para uma definição mais efetiva e interventiva de “Capitaloceno”, em que “as alterações climáticas provêm de um regime económico que assenta na extração de matérias-primas e na apropriação da energia não paga, uma predação durante muito tempo considerada como natural.” (Jean-Baptiste Malet, “O fim do mundo não vai acontecer”, Le Monde Diplomatique, ed. port., agosto de 2019, assim como as restantes referências deste parágrafo). E se logo em 1974, o engenheiro agrónomo francês René Dumont, no livro À vous de choisir: l’écologie ou la mort, alertava para o facto de que, “Se mantivermos a taxa de expansão atual da população e da produção industrial até ao próximo século, será o colapso total da nossa civilização”, o estado de “emergência ambiental” é, já hoje, vivido por centenas de milhões de indivíduos em todo o mundo: 821 milhões de pessoas subalimentadas, mil milhões sem alojamento ou instalações sanitárias condignas, 2,1 mil milhões sem fornecimento de água potável.
Daí que a questão ambiental seja uma matéria eminentemente política, no sentido de encontrar soluções alternativas para o devir coletivo. Como refere o diretor-executivo da revista Visão, Rui Tavares Guedes, “para se salvar o mundo, vai ser preciso mudar, primeiro, o mundo.” E aí, uma temática que parece consensual – a defesa do planeta – debate-se com a diversidade dos caminhos a seguir e com a pluralidade dos interesses a afrontar. Ora este é o domínio das opções políticas e do cotejo dos distintos projetos de sociedade e de sustentabilidade da nossa existência na Terra. Quem não compreender isto, pouco entenderá do que se passa nos nossos dias e, sobretudo, pouca eficácia terá na sua ação, por melhores intenções que apresente.
Da tosca taxinomia de posições que invocamos anteriormente face às alterações climáticas – os broncos e ignorantes, os iludidos tecnológicos, os sonsos oportunistas – falta referir uma última categoria: a dos ingénuos bem-intencionados. De todos, são aqueles que, pela atitude cândida que adotam, mais sofrem com o que vêem e, em simultâneo, menos eficazes se mostram na sua demanda. Porque, sendo sinceros nos seus propósitos, falham o alvo da sua indignação e alienam os mecanismos de atuação política ao seu dispôr. A jovem estudante sueca Greta Thunberg, que iniciou o movimento Skolstrejk för Klimatet (greve escolar pelo clima), declarou, angustiada, na edição de 2019 do Fórum Económico Mundial, em Davos, “Não quero que estejam cheios de esperança, quero que entrem em pânico. Quero que, todos os dias, tenham medo como eu. E depois quero que ajam”, proclamando, “Sou apenas um mensageiro” (o “messias 2.0”, como a apelidou ironicamente o jornalista francês Jean-Baptiste Malet, no artigo citado).
Mas será a greve às aulas, às sextas-feiras, que poderá resolver o problema? Será que é a escola a principal culpada pela situação a que chegamos? Ou, pelo contrário, não será na instituição escolar que os alunos tomam contacto, muitas vezes pela primeira vez, com a ecologia e as preocupações ambientais, tantas vezes negligenciadas pelas próprias famílias? Será este o alvo certo, ou será apenas “uma forma de lutar contra os sentimentos de culpa consumistas.” a que se refere o sociólogo alemão Wolfgang Streeck, em entrevista a Hugo Mendes na revista Manifesto (nº 3 primavera/verão 2019, p. 85)? Não seria mais eficaz o boicote a produtos geneticamente modificados ou fruto da exploração agropecuária intensiva e das empresas que os promovem? Não seria mais eficaz a exigência de mudanças profundas no estilo de vida consumista, boicotando as atividades gastadoras de grandes quantidades de energia ou de água, reciclando os próprios artigos de consumo (como o vestuário) ou recusando comprar produtos às empresas poluidoras e predadoras dos recursos naturais? Não seria mais eficaz juntar esforços a nível mundial a favor de uma maior igualdade e justiça social, contra a exploração económica e todas as iniciativas suicidárias do governo americano ou brasileiro relativamente à destruição do meio ambiente?
Aquando da “greve climática estudantil” global do passado dia 24 de maio, podia ler-se em cartazes ostentados por jovens, nas manifestações em Portugal, “Faltei à aula de história para fazer história” ou “Para quê ir à escola se não há futuro?” Mas é precisamente no meio académico e com base em estudos científicos – que estes jovens parecem enjeitar – que partem as denúncias mais claras acerca da crise ambiental. Pondo o dedo na ferida, o instituto finlandês BIOS, num relatório realizado para as Nações Unidas, confronta-nos claramente com a necessidade de “Matar o capitalismo para salvar a Terra” (título do artigo do jornalista Nuno Aguiar sobre a “emergência climática”, na revista Visão 30/5/2019), explicando que “A atuação com base na economia de mercado não será suficiente, mesmo com um preço de carbono elevado. […] Não basta o Estado corrigir as «falhas de mercado» de forma reativa.” Será que esta falta de foco nas formas de luta adotadas, não corresponde, afinal, a um elevado estado de alienação perante a realidade planetária? É que os problemas ambientais derivam do sistema capitalista e não o contrário.
Hugo Fernandez