De vez em quando somos surpreendidos com a descoberta da pólvora, explosivo que, como se sabe, foi inventado há dois mil anos na China da dinastia Han e depois amplamente usada nas guerras da Europa medieval e renascentista. É invenção muito antiga, portanto. Ainda assim, parece que por cá alguns têm andado distraídos.
Esta estranha invocação histórica vem a propósito de um artigo da jornalista do Expresso, Cátia Mateus, intitulado “Afinal eles querem um emprego para a vida” (Expresso, 23/2/2019). O “eles” a que se refere a articulista é a designada “geração Z”, isto é, aquela geração que nasceu entre o final do século passado e o início deste e que, em termos demográficos, sucedeu à “geração Y” – os nascidos nas décadas de oitenta e noventa do século passado – vulgarmente conhecida por millennials ou “generation me” (conforme a definição sociológica da psicóloga americana Jean Marie Twenge na sua obra Generation Me: Why Today’s Young Americans Are More Confident, Assertive, Entitled – and More Miserable Than Ever Before, New York, Free Press, 2006). A geração que, em termos nacionais, ficou conhecida por denominações mais comezinhas como “nem-nem” (nem estudam, nem trabalham) ou “geração rasca” (expressão usada pelo jornalista Vicente Jorge Silva em 1994 num artigo do jornal Público, que foi justamente convertida em “geração à rasca” como mote das megamanifestações de 12 de março de 2011).
Identificados os sujeitos do artigo, é no “afinal” do título que reside o busílis da questão, já que toda a análise tem por base o espanto com que se olha para uma constatação que nos parece óbvia e a que a própria jornalista alude: “A geração Z chega às empresas e quer vínculos duradouros”. Explica, então, que esta é “Uma geração que cresceu com a crise, que é cautelosa na gestão da sua carreira (…).” e que, segundo um estudo da Associação Americana de Consultores Certificados, quer “segurança, planos de carreira e um escritório físico para trabalhar”. Sublinhando que “os profissionais da geração Z permanecerão na mesma empresa toda a vida, desde que esta garanta um processo atrativo de progressão e formação e um ambiente de trabalho inclusivo.”, Cátia Mateus conclui que “Esta é a geração que pode fazer regressar o culto do emprego para a vida.” Ou seja, esta geração quer, afinal, aquilo que toda a gente quer em qualquer geração, assim hajam empresas a sério e gestores responsáveis, e não meros exploradores de mão de obra barata (os incensados “empresários de sucesso” da cartilha neoliberal): estabilidade de emprego e de vida, condições de trabalho e remuneração decentes e perspetivas de carreira compatíveis com as habilitações e expetativas das pessoas. O que há aqui de novo? Qual a razão para tanta admiração?
Para surpresa (ou será indignação?) da nossa jornalista, os membros da geração Z contrariam a tendência anterior de “uma geração de profissionais com uma visão de carreira disruptiva (…) formatados [sic] para mudar de emprego a cada dois anos”. E Cátia Mateus transforma aquilo que foram os anos de chumbo do desemprego maciço, da precariedade laboral, dos baixos salários, da proliferação da pobreza, da predação económica, da desregulamentação financeira e do esgotamento dos recursos naturais do consulado transatlântico de Thatcher-Blair-Reagan-Clinton e associados, na definição virtuosa dos millennials como “Profissionais que provaram que o mundo é um espaço de múltiplas oportunidades, dispostos a arriscar, ambiciosos, focados na carreira, adeptos da flexibilidade e sedentos de experiência.” Assim seria para alguns quadros superiores das empresas ou para executivos que se habituaram a saltar de conselho de administração em conselho de administração. Certamente não era essa a realidade da imensa maioria dos trabalhadores. Em que mundo vive esta gente?
Talvez no mesmo mundo de insuportável arrogância e paternalismo de Alexandre Soares dos Santos quando, em entrevista ao Observador (25/2/2019), se saiu com esta pérola: “Os pobres fizeram-se para a gente os transformar em classe média”. Por “a gente”, entenda-se, está o nós majestático da elite dos ricos a quem, pelos vistos, cabe o controle da ascensão social e a tutela das populações. Antes, propugnava-se o ideal dos “pobrezinhos, mas honrados”. Outros tempos!
Hugo Fernandez
É discurso recorrente da direita – em especial daquela direita intelectual e modernaça que se encontra entrincheirada em nichos universitários e publicações apologistas – que nos dias que correm se verifica uma rutura entre a população e os políticos. Tomada por original, tal rutura significaria um inexorável divórcio entre o “povo” e os seus governantes e, para todos os efeitos, daqueles que elegemos no âmbito da representação política que a democracia consagra. O novo ideal político é ser “antissistema”. Foi assim que se justificaram as eleições de Donald Trump ou Jair Bolsonaro, bem como as irrupções populistas que têm surgido um pouco por todo o lado. É curiosa esta dicotomia entre os milhões de incensados “puros” de propósitos e a minoria perversa que controlaria o establishment, ultrapassando-se, desta forma, as clivagens consideradas obsoletas entre esquerda e direita, ou procurando tornar irrelevante a pluralidade de soluções políticas presentes em qualquer sociedade democrática. A história é atrativa, mas largamente falaciosa. Baseia-se no que vou designar, de forma esquemática, pelos três “D’s” complementares e convergentes da ordem neoliberal contemporânea: despolitização, desideologização e dissolução social.
O liberalismo tem, na sua génese doutrinária, dificuldade em lidar com a ideia de sociedade enquanto um todo organizado na defesa do bem comum e do bem-estar coletivo. A apologia do “individualismo possessivo” e a crença na exclusiva responsabilidade individual pela vida de cada um, estriba-se na ideia matricial de que tem êxito quem toma as decisões corretas e fracassa quem não o faz. Procura-se, sobretudo, obnubilar qualquer interferência da sociedade na determinação específica – ainda que em grau variável – dos destinos individuais. Desta crença se fez eco o presidente francês Emmanuel Macron quando, em declarações públicas, se referiu às “pessoas que não são nada” por oposição àquelas que “têm sucesso” (cit. em Le Monde Diplomatique, ed. port., janeiro de 2019). São conhecidos os efeitos de semelhante visão das coisas.
Isolado o indivíduo e posta em causa a dimensão política – no seu sentido clássico de gestão da res publica – pela desvalorização sistemática da participação cidadã (qualquer insignificância ou futilidade mundana tem muitíssimo mais tempo de antena nos meios de comunicação social que um debate político, as declarações de um dirigente partidário ou as opiniões de um cientista ou pensador, por mais reputados que sejam) e pela disseminação de valores e crenças antipolíticas (a visão da política como encarnação do “mal”), o resultado é uma crescente alienação cívica da generalidade da população. Esta campanha é consciente, premeditada e profundamente ideológica, desde as formas mais larvares de apoliticismo do “não te metas nisso que é política”, passando por “a minha política é o trabalho”, até às formas mais sofisticadas da sagração, pretensamente não ideológica, da gestão tecnocrática dos negócios públicos e, nesta fase, a separação ético-moral entre um “nós” constituído por cidadãos puros, crentes e bem intencionados, e um “eles”, os políticos, encarnação de um establishment odioso, naturalmente mentirosos, corruptos e autocentrados.
Mas, como justamente sublinha o historiador José Pacheco Pereira “Ser «antissistema» significa ser contra as diferenças institucionalizadas nos partidos políticos, e contra os mecanismos de representação e mediação, sejam os parlamentos, os partidos ou os sindicatos.”, concluindo, “Quando se vai ver o que é isso do «sistema», verifica-se que é da democracia que estão a falar.” (Público, 16/2/2019). Acresce a seguinte realidade; calculando-se que anualmente, só na União Europeia, se perdem cerca de um bilião de euros em evasão fiscal e engenharia fiscal agressiva por parte das grandes empresas multinacionais, a questão da falsidade, corrupção e prosseguimento exclusivo de interesses próprios é capaz de ter outros destinatários que não – ou, pelo menos, não principalmente – os políticos.
Esta pretensa desideologização da sociedade gira em torno do dogma consensualizado por campanhas permanentes de desinformação e alienação do “não há alternativa”, que a ortodoxia do pensamento hegemónico amplamente difunde e procura inculcar na mente dos mais ingénuos ou incautos. Com êxito assinalável, diga-se; como explicava o politólogo norte-americano Barrington Moore acerca das grandes vagas de contestação nos anos 1960-1970 nos Estados Unidos, à questão “Por que motivo se revoltam as pessoas?”, ele respondia com uma outra: “Por que motivo não o fazem mais frequentemente?” (Barrington Moore Jr. Injustice: the social bases of obedience and revolt, New York, M. E. Sharpe, 1978, cit. em Laurent Bonelli, “Porquê agora?”, Le Monde Diplomatique, ed. portuguesa, janeiro 2019).
Sobretudo faz crer que as alternativas efetivamente existentes são subversivas para o statu quo – no que tem razão – e perigosas para o normal funcionamento da sociedade – o que é falso – já que todas as decisões consideradas ponderadas e razoáveis é suposto provirem apenas da gestão tecnocrata de especialistas, alegadamente apolíticos e convenientemente desideologizados. A esfera política – a dimensão do confronto de ideias e de soluções para os problemas existentes – eclipsa-se perante a prevalência de uma lógica empresarial, lucrativa e predadora, que se sobrepõe a quaisquer outras considerações de ordem cívica (como a defesa dos direitos, liberdades e garantias constitucionais) ou de coesão social e territorial (justiça social e desenvolvimento harmónico do todo nacional). Sobrevém a “mercadorização” das existências, própria daquilo que o economista e antropólogo austro-húngaro Karl Polanyi designava, já em 1944, na sua conhecida obra The Great Transformation, “sociedade de mercado”. É este modelo de vida em sociedade baseado na desresponsabilização cívica dos indivíduos, das empresas e das instituições, que justifica a defesa dos paraísos fiscais e a candura de afirmações como a do fundo financeiro Ugland House (detentor, por exemplo, da seguradora Fidelidade) que no seu site argumenta que “Os investidores e os seus consultores escolhem as ilhas Caimão por razões comerciais e empresariais prudentes, uma das quais é a neutralidade fiscal e não a evasão fiscal.” (Público, 12/2/2019).
Concomitantemente advoga-se a transferência dos poderes estatais para o âmbito da sociedade civil e do mercado, com todo o rol de perversões e injustiças que são conhecidas. A doutrina neoliberal, longe de significar quer um retorno ao pensamento liberal original, quer ao capitalismo selvagem da Revolução Industrial, ultrapassou o confronto das esferas estatal e mercantil – cuja lógica de funcionamento tendia a uma limitação mútua – para a assunção do mercado como modelo para a governação, numa espécie de mercantilização da ação do Estado. Faz-se a apologia de um modelo em que é o mercado que molda a vida social, em vez de ser a vida social a determinar o mercado. Isto leva à progressiva dissolução dos laços sociais, à atomização das comunidades e à perda de identidade dos indivíduos, naquilo que o sociólogo francês Emile Durkheim designava por “anomia”. Esta ausência de reconhecimento comunitário – e, para todos os efeitos, de um mínimo de reciprocidade social – reforça as desigualdades, alarga inexoravelmente as áreas de exclusão, cria barreiras intransponíveis entre os sujeitos, justifica a discriminação e induz lógicas perversas e maniqueístas do funcionamento das sociedades, doravante divididas em “castas” e “guetos”. Quando a disparidade das condições de vida e a concentração da propriedade e da riqueza é tanta, dificilmente os excluídos são considerados gente, sobrevindo a sobranceria, o desprezo, a humilhação e o ostracismo.
Na sua habitual crónica no jornal Público, o historiador Rui Tavares refere dados impressionantes: Jeff Bezos, considerado o homem mais rico do mundo (com apenas 55 anos de idade) possui uma fortuna estimada em 150 mil milhões de euros, trinta vezes mais que o multimilionário Calouste Gulbenkian, considerado o homem mais rico do mundo à época da sua morte, em 1955. Mas não é a precocidade da fortuna que verdadeiramente perturba, mas o seu montante. Socorrendo-se dos cálculos do autor norte-americano Nathan H. Rubin, se alguém auferisse um rendimento anual de 50 mil euros (o que apenas acontece com 5% dos portugueses), só passados vinte anos deteria um milhão de euros, isto se não gastasse rigorosamente nada, o que é manifestamente impossível. Bezos detém 150 mil vezes isso. Para se atingir os mil milhões de euros, o comum dos mortais teria de viver, nas condições referidas, 20 mil anos. Bezos tem 150 desses. A fortuna do presidente da Amazon é maior do que o PIB de 125 países, mais de metade das nações existentes. Ultrapassará brevemente o PIB de Portugal, que ronda os 200 mil milhões de euros. Inacreditável, não é! Inacreditável, mas sobretudo profundamente irracional. É que, para gastar semelhante fortuna, o dispêndio teria que se cifrar nas dezenas de milhares de euros por dia, o que é dificilmente imaginável. Rui Tavares põe, então, a questão crucial: “e à humanidade, fazem falta megamilionários? A resposta é: não.” (Público, 1/2/2019). Lembra, para o efeito, o dado estatístico decisivo que nos revela que o PIB mundial, igualitariamente distribuído, daria cerca de 20 mil euros para cada habitante do nosso planeta (mais do que ganham 75% dos portugueses). Para que conste!
Tudo é apresentado como se a doutrina neoliberal e o modelo de sociedade que preconiza e estabeleceu a nível global não tivessem nada a ver com a atual situação. Porém, ao contrário do que é propagandeado, são as forças políticas de direita que são as verdadeiras promotoras da deriva populista a que assistimos. O que se verifica é um novo fôlego do establishment que nos governa, a coberto da sua suposta contestação. E a sua principal vítima é o ideário democrático. Só isso explica análises tão espantosas como aquela que apareceu recentemente no consagrado Finantial Times (cit. em Le Monde Diplomatique, ed. portuguesa, janeiro 2019), segundo a qual a maior ameaça para a democracia na América Latina advém do recém-eleito presidente mexicano Andrés Manuel López Obrador, um democrata progressista, e não do presidente brasileiro de extrema-direita Jair Bolsonaro! Palavras para quê?
Hugo Fernandez