Albardas e Alforges... nunca vi nada assim! Minto... já vi!
Domingo, 20 de Janeiro de 2019
ELES COMEM TUDO

Talvez mais do que nunca faça sentido invocar a canção de Zeca Afonso, Os Vampiros, editada no longínquo ano de 1963. Com efeito, o brutal aumento da desigualdade na distribuição do rendimento e a concentração da riqueza e património nas mãos de cada vez menos indivíduos, faz com que aquilo que era denunciado pelo cantor e compositor aveirense mantenha, passadas quase seis décadas, uma impressionante atualidade.

Desigualdade económica significa duas coisas: desigualdade de rendimentos e riqueza. Pela primeira, entende-se a soma dos recursos financeiros auferidos, como salários, dividendos, poupanças, juros, rendas, pensões ou subsídios. Relativamente ao segundo aspeto, falamos do que a pessoa detém, quer sejam bens patrimoniais, ações, depósitos, seguros, etc. Em qualquer destas categorias, e para tomarmos o exemplo paradigmático dos EUA, no período de 2013 a 2015 (em plena crise económica), os 20% mais ricos receberam o equivalente a 51% dos rendimentos disponíveis, enquanto os 20% mais pobres apenas atingiram os 3%, cifrando-se a disparidade de riqueza numa diferença de 81% para os primeiros e um endividamento correspondente a -2% para os segundos (devido ao desfasamento entre o que nominalmente se possui e o que realmente se detém). A riqueza dos 1% dos americanos mais abastados aumentou exponencialmente de 25% do total em 1986 para 42% em 2012, sendo que a riqueza dos 0,1% dos super-ricos mais do que duplicou em igual período, dos 10% para os 22% (cf. Stephen McNamee, The Meritocracy Myth, Maryland, Rowman & Littlefield, 2018, pp. 46-47).

Desde então, apenas se assistiu ao agravamento desta disparidade. Em termos da riqueza global, e segundo a organização britânica Oxfam, em 2016, 62 indivíduos detinham uma riqueza equivalente a metade da população mundial, quando, em 2010, eram 388 (cf. Jo Littler, Against Meritocracy: Culture, Power and Myths of Mobility, London, Routledge, 2018, p. 116). Nunca, na história da humanidade, se assistiu a tamanha concentração de riqueza. Grande parte desta riqueza é rentista e absolutamente parasitária e especulativa (“lucro não produtivo”, como se lhe refere o economista grego Costas Lapavitsas na sua obra Profiting Without Producing: How Finance Exploits Us All, London, Verso, 2013). Para se ter uma ideia do desequilíbrio existente, e segundo o aclamado economista francês Thomas Piketty, enquanto a economia mundial cresce cerca de 1-1,5% ao ano, os lucros do capital situam-se nos 4-5% (Thomas Piketty, Le Capital au XXI Siècle, Paris, Seuil, 2013, cf. pp. 560-566). Como é possível manter esta situação?

A estrutura produtiva que engendra tamanha desigualdade tornou-se profundamente disruptiva do ponto de vista social e irracional, quer do ponto de vista económico, quer do ponto de vista ambiental e de preservação dos recursos existentes, pelo seu reiterado efeito predador. Não só a sustentabilidade da vida no planeta está em risco, como a própria economia está a ser delapidada, caindo por terra quaisquer noções de racionalidade económica, quanto mais de prosperidade comum. Como diz o economista Carlos Farinha Rodrigues, “esta concentração excessiva da riqueza e dos rendimentos num grupo reduzido de indivíduos e famílias é não só um fator de injustiça social e potenciador da pobreza e exclusão de milhões de cidadãos, mas também um travão ao crescimento económico e incompatível com a noção de desenvolvimento sustentado que respeite o ambiente, promova a criação de riqueza e a sua distribuição mais equitativa e que seja inclusivo para o conjunto da sociedade.” (Carlos Farinha Rodrigues, “Um outro olhar sobre as desigualdades”, Manifesto, nº 2, 2018-2019, 102-108, p. 104).

Por cá, e como foi amplamente noticiado, a média salarial de um administrador de uma empresa cotada no PSI 20 é 33 vezes superior ao de um trabalhador dessa mesma empresa. Mais, no período de resgate financeiro da troika, o aumento salarial médio daqueles foi de cerca de 40%, tendo os trabalhadores visto agravar-se o seu rendimento em perto de 10%. Apetece aqui citar a conhecida passagem do Padre António Vieira no início da parte IV do “Sermão de Santo António aos Peixes”, escrito em 1654 a propósito do conflito entre os colonos e os Jesuítas sobre a escravidão dos povos indígenas: “A primeira cousa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande.”

Não admira, por isso, o desabafo em forma de questionamento do sociólogo e economista britânico Andrew Sayer, que constitui o título do seu livro de 2016, Why We Can’t Afford the Rich (Bristol, Policy Press).



Hugo Fernandez



publicado por albardeiro às 12:47
link do post | comentar | favorito

pesquisar
 
Fevereiro 2024
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3

4
5
6
7
8
9
10

12
13
14
15
16
17

18
19
21
22
23
24

25
26
27
28
29


posts recentes

Seminário em Alenquer - A...

O MOMENTO DA VERDADE (em ...

ROLO COMPRESSOR

Reflexão sobre o artigo d...

AS PERGUNTAS

Valorizar os servidores d...

MÍNIMOS

Como será a educação daqu...

EXCESSIVO

DEMOCRACIA

arquivos

Fevereiro 2024

Janeiro 2024

Outubro 2023

Julho 2023

Junho 2023

Abril 2023

Março 2023

Fevereiro 2023

Dezembro 2022

Novembro 2022

Outubro 2022

Setembro 2022

Junho 2022

Maio 2022

Abril 2022

Março 2022

Janeiro 2022

Dezembro 2021

Novembro 2021

Outubro 2021

Agosto 2021

Julho 2021

Junho 2021

Abril 2021

Março 2021

Fevereiro 2021

Janeiro 2021

Dezembro 2020

Outubro 2020

Julho 2020

Junho 2020

Abril 2020

Fevereiro 2020

Janeiro 2020

Novembro 2019

Outubro 2019

Setembro 2019

Junho 2019

Maio 2019

Abril 2019

Março 2019

Janeiro 2019

Novembro 2018

Setembro 2018

Julho 2018

Maio 2018

Abril 2018

Fevereiro 2018

Janeiro 2018

Dezembro 2017

Novembro 2017

Outubro 2017

Setembro 2017

Julho 2017

Junho 2017

Maio 2017

Abril 2017

Março 2017

Fevereiro 2017

Janeiro 2017

Dezembro 2016

Novembro 2016

Outubro 2016

Setembro 2016

Agosto 2016

Julho 2016

Junho 2016

Maio 2016

Abril 2016

Março 2016

Janeiro 2016

Novembro 2015

Outubro 2015

Setembro 2015

Agosto 2015

Julho 2015

Maio 2015

Abril 2015

Março 2015

Fevereiro 2015

Janeiro 2015

Dezembro 2014

Outubro 2014

Setembro 2014

Agosto 2014

Julho 2014

Maio 2014

Abril 2014

Março 2014

Fevereiro 2014

Janeiro 2014

Dezembro 2013

Novembro 2013

Outubro 2013

Setembro 2013

Agosto 2013

Julho 2013

Junho 2013

Maio 2013

Abril 2013

Março 2013

Fevereiro 2013

Janeiro 2013

Dezembro 2012

Novembro 2012

Outubro 2012

Setembro 2012

Julho 2012

Junho 2012

Maio 2012

Abril 2012

Março 2012

Fevereiro 2012

Janeiro 2012

Dezembro 2011

Novembro 2011

Outubro 2011

Setembro 2011

Agosto 2011

Julho 2011

Junho 2011

Maio 2011

Abril 2011

Março 2011

Fevereiro 2011

Janeiro 2011

Dezembro 2010

Novembro 2010

Outubro 2010

Setembro 2010

Agosto 2010

Julho 2010

Junho 2010

Abril 2010

Fevereiro 2010

Janeiro 2010

Dezembro 2009

Novembro 2009

Setembro 2009

Agosto 2009

Julho 2009

Junho 2009

Março 2009

Fevereiro 2009

Janeiro 2009

Dezembro 2008

Novembro 2008

Setembro 2008

Julho 2008

Junho 2008

Abril 2008

Março 2008

Fevereiro 2008

Janeiro 2008

Julho 2007

Junho 2007

Maio 2007

Abril 2007

Fevereiro 2007

Janeiro 2007

Novembro 2006

Outubro 2006

Setembro 2006

Agosto 2006

Julho 2006

Junho 2006

Maio 2006

Abril 2006

Março 2006

Fevereiro 2006

Janeiro 2006

Dezembro 2005

Novembro 2005

Outubro 2005

Setembro 2005

Julho 2005

Junho 2005

Maio 2005

Abril 2005

Março 2005

Fevereiro 2005

Janeiro 2005

Dezembro 2004

Novembro 2004

Outubro 2004

Setembro 2004

Agosto 2004

Julho 2004

Junho 2004

Maio 2004

Abril 2004

Março 2004

blogs SAPO
subscrever feeds
Em destaque no SAPO Blogs
pub