Talvez mais do que nunca faça sentido invocar a canção de Zeca Afonso, Os Vampiros, editada no longínquo ano de 1963. Com efeito, o brutal aumento da desigualdade na distribuição do rendimento e a concentração da riqueza e património nas mãos de cada vez menos indivíduos, faz com que aquilo que era denunciado pelo cantor e compositor aveirense mantenha, passadas quase seis décadas, uma impressionante atualidade.
Desigualdade económica significa duas coisas: desigualdade de rendimentos e riqueza. Pela primeira, entende-se a soma dos recursos financeiros auferidos, como salários, dividendos, poupanças, juros, rendas, pensões ou subsídios. Relativamente ao segundo aspeto, falamos do que a pessoa detém, quer sejam bens patrimoniais, ações, depósitos, seguros, etc. Em qualquer destas categorias, e para tomarmos o exemplo paradigmático dos EUA, no período de 2013 a 2015 (em plena crise económica), os 20% mais ricos receberam o equivalente a 51% dos rendimentos disponíveis, enquanto os 20% mais pobres apenas atingiram os 3%, cifrando-se a disparidade de riqueza numa diferença de 81% para os primeiros e um endividamento correspondente a -2% para os segundos (devido ao desfasamento entre o que nominalmente se possui e o que realmente se detém). A riqueza dos 1% dos americanos mais abastados aumentou exponencialmente de 25% do total em 1986 para 42% em 2012, sendo que a riqueza dos 0,1% dos super-ricos mais do que duplicou em igual período, dos 10% para os 22% (cf. Stephen McNamee, The Meritocracy Myth, Maryland, Rowman & Littlefield, 2018, pp. 46-47).
Desde então, apenas se assistiu ao agravamento desta disparidade. Em termos da riqueza global, e segundo a organização britânica Oxfam, em 2016, 62 indivíduos detinham uma riqueza equivalente a metade da população mundial, quando, em 2010, eram 388 (cf. Jo Littler, Against Meritocracy: Culture, Power and Myths of Mobility, London, Routledge, 2018, p. 116). Nunca, na história da humanidade, se assistiu a tamanha concentração de riqueza. Grande parte desta riqueza é rentista e absolutamente parasitária e especulativa (“lucro não produtivo”, como se lhe refere o economista grego Costas Lapavitsas na sua obra Profiting Without Producing: How Finance Exploits Us All, London, Verso, 2013). Para se ter uma ideia do desequilíbrio existente, e segundo o aclamado economista francês Thomas Piketty, enquanto a economia mundial cresce cerca de 1-1,5% ao ano, os lucros do capital situam-se nos 4-5% (Thomas Piketty, Le Capital au XXI Siècle, Paris, Seuil, 2013, cf. pp. 560-566). Como é possível manter esta situação?
A estrutura produtiva que engendra tamanha desigualdade tornou-se profundamente disruptiva do ponto de vista social e irracional, quer do ponto de vista económico, quer do ponto de vista ambiental e de preservação dos recursos existentes, pelo seu reiterado efeito predador. Não só a sustentabilidade da vida no planeta está em risco, como a própria economia está a ser delapidada, caindo por terra quaisquer noções de racionalidade económica, quanto mais de prosperidade comum. Como diz o economista Carlos Farinha Rodrigues, “esta concentração excessiva da riqueza e dos rendimentos num grupo reduzido de indivíduos e famílias é não só um fator de injustiça social e potenciador da pobreza e exclusão de milhões de cidadãos, mas também um travão ao crescimento económico e incompatível com a noção de desenvolvimento sustentado que respeite o ambiente, promova a criação de riqueza e a sua distribuição mais equitativa e que seja inclusivo para o conjunto da sociedade.” (Carlos Farinha Rodrigues, “Um outro olhar sobre as desigualdades”, Manifesto, nº 2, 2018-2019, 102-108, p. 104).
Por cá, e como foi amplamente noticiado, a média salarial de um administrador de uma empresa cotada no PSI 20 é 33 vezes superior ao de um trabalhador dessa mesma empresa. Mais, no período de resgate financeiro da troika, o aumento salarial médio daqueles foi de cerca de 40%, tendo os trabalhadores visto agravar-se o seu rendimento em perto de 10%. Apetece aqui citar a conhecida passagem do Padre António Vieira no início da parte IV do “Sermão de Santo António aos Peixes”, escrito em 1654 a propósito do conflito entre os colonos e os Jesuítas sobre a escravidão dos povos indígenas: “A primeira cousa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande.”
Não admira, por isso, o desabafo em forma de questionamento do sociólogo e economista britânico Andrew Sayer, que constitui o título do seu livro de 2016, Why We Can’t Afford the Rich (Bristol, Policy Press).
Hugo Fernandez